sexta-feira, 11 de abril de 2008

Para não fazer o negócio da China

Chama-se O Segredo Chinês – Milagre Econômico e a Vida Real na China de Hoje – o livro lançado pela Editora Record no mês passado, que seria muito útil nas mãos de jornalistas responsáveis pela orientação das pautas da imprensa brasileira. Se a imprensa não consegue se aproximar do tema da sustentabilidade pelo ângulo do risco ambiental, esse livro se oferece como um instrumento útil para a compreensão do novo contexto global, pela visão do risco social.

A diferença entre uma e outra abordagens é que o risco ambiental, explicitado pelo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), divulgado em fevereiro de 2007, produz no máximo campanhas pontuais das quais não resultou ainda qualquer mudança substancial no modelo de desenvolvimento adotado pelo governo brasileiro. Os números recentes do desmatamento da Amazônia, a
despeito de toda a polêmica sobre a acuidade das avaliações via satélite, demonstram que as autoridades não conseguem reverter o processo de perda do patrimônio natural do país.

Nas empresas, o que se vê como resultado da constatação de que as ações humanas conduzem a uma situação irreversível para o planeta ainda são iniciativas pontuais, mais claramente dirigidas para a melhoria da imagem institucional do que destinadas a fazer diferença no cenário de risco. Contam, quase sempre, com a boa vontade da imprensa em destacar as "boas ações", naquilo que se convencionou chamar responsabilidade socioambiental das empresas.

Repensar o modelo
O livro O Segredo Chinês…, escrito pelo casal de jornalistas e escritores Chen Guidi e Wen Chuntao, tem o mérito de radiografar o mundo rural chinês, revelando que o modelo de desenvolvimento daquele país produziu a exclusão de nada menos do que 900 milhões de cidadãos, dos quais 700 milhões são agricultores sempre à beira da fome e do desespero, mas ainda presos ao campo, e 200 milhões são trabalhadores rurais que vagueiam pelo país, de obra em obra, longe de suas famílias, em busca de trabalho e sustento. Uma estrutura burocrática inchada e corrupta completa o quadro.

O ponto de inflexão que deveria chamar a atenção dos jornalistas brasileiros é o fato de que o livro foi lançado em 2004, quando a China alcançava níveis de crescimento surpreendentes, entre 8% e 9% ao ano, sob aplausos da imprensa ocidental. Não foram poucas as manchetes de jornal e as capas de revista comparando o robusto crescimento da China contra os minguados 2,5% da economia brasileira no período.

Também não se pode esquecer o desfile de economistas exigindo crescimento a qualquer custo, articulistas especializados e os corneteiros de sempre a cobrar mais facilidades para o capital e menos restrições para os negócios.

O livro, traduzido para o mercado brasileiro com três anos de atraso, revela, para quem queira tomar conhecimento, um fato que os estudiosos do processo da globalização e os profissionais preocupados com a busca da sustentabilidade vêm gritando em vão: o crescimento sem respeito ao meio ambiente e sem ganhos sociais é retrocesso. Como curiosidade, deve-se registrar o título que a Folha de S.Paulo deu ao texto sobre o livro, na edição do dia 29 de março: "Camponeses perturbam milagre chinês".

O que os autores do livro testemunham é um fato relatado há tempos por executivos brasileiros que visitam regularmente o interior da China. Paralelamente ao desastre ambiental que se processa naquele país, desenha-se lá também aquilo que o ecossocioeconomista Ignacy Sachs chama de a iminência de um "tsunami social". Modestamente, este observador deu sua contribuição para o debate no livro O Mal-Estar na Globalização (2005, Editora A Girafa), prêmio da União Brasileira de Escritores, na categoria ensaio, em 2006. Houve dezenas, talvez centenas de seminários, debates, defesas de teses, pesquisas, mas a imprensa seguiu martelando a defesa do velho modelo da busca de resultados financeiros das empresas como única forma de estimular o crescimento da economia.

Não se trata apenas de incapacidade da imprensa para entender a necessidade de repensar o modelo econômico, ou de falta de disposição para romper com os paradigmas que tradicionalmente orientam as escolhas editoriais. Trata-se também da ausência de sensibilidade para determinados temas, que parecem esgotados depois do tardio engajamento da mídia nacional na campanha pela redemocratização do país, nos anos 1980.

Propostas alternativas
O Brasil celebra em 2008 os vinte anos da Constituição de 1988, fundamental para a reconstrução do Estado de Direito, da qual a imprensa tirou grandes benefícios. Também são lembrados os vinte anos do assassinato do ambientalista Chico Mendes, líder dos seringalistas do Acre. A imprensa cobriu bem o desenvolvimento da Constituinte, mas ignorou a luta de Chico Mendes praticamente até o dia da sua morte, mesmo depois que ele já havia se tornado uma figura reconhecida internacionalmente, com o prêmio Global 500 da ONU. A exceção era o jornal alternativo Varadouro, mantido de 1977 a 1981 pelos jornalistas Elson Martins e Sílvio Martinello, com risco constante de perder suas próprias vidas.

Durante todos os anos da luta dos seringueiros, até 2008, a imprensa regional da Amazônia apoiou incondicionalmente os fazendeiros que, com financiamento oficial e suporte do Estado, empurravam as fronteiras da agropecuária para dentro da floresta, tornando impossível a vida dos seringueiros. Dezenas de coletadores de castanhas e de látex foram mortos por pistoleiros, sob o silêncio omisso e cúmplice da imprensa nacional, até o dia 22 de dezembro de 1988, quando Chico Mendes tombou, baleado por um criador de gado. A imprensa brasileira só enxergou o drama dos seringueiros depois que o New York Times publicou em primeira página uma reportagem sobre o drama que se desenrolava nas florestas da Amazônia Ocidental.

Na semana que passou, a revista Veja voltou a se interessar por Chico Mendes. Mas não necessariamente para relembrar sua luta e atualizar seus leitores sobre a luta pela preservação da maior reserva de biodiversidade do planeta. O que chamou a atenção de Veja foi o cheiro de sangue: a viúva de Chico Mendes, Ilzamar, concedeu entrevista ao blog do jornalista acreano Altino Machado, na quarta-feira (2/4), na qual desfiou um rosário de queixas contra o governo petista do Acre, a quem acusa de não respeitar o legado do líder ambientalista. Jornalistas de Veja passaram os últimos dias tentando falar com ela, para dar amplitude nacional ao seu descontentamento.

Ilzamar Mendes tem suas razões para se queixar do uso político da memória de seu marido, embora nunca tenha se destacado como militante de frente antes do assassinato. Mas ela ajudou a ampliar o alcance da mensagem dos seringueiros, com apoio dos filhos de Chico Mendes, e seus alertas sobre as perdas das reservas de seringueiras pelo avanço das pastagens precisam ser ouvidas. No entanto, a imprensa deveria estar atenta ao que se passou no Acre nos últimos quinze anos, com as lideranças nascidas no movimento ambientalista que produziram uma inegável renovação na política local, que afastou do poder os coronéis que oprimiam os seringueiros com o gatilho dos jagunços.

O que é que tudo isso tem a ver com o livro de Chen Guidi e sua mulher Wu Chuntao? Tem que a nuvem sombria que pesa sobre a China também se desenha nos céus do Brasil. E ela não é formada apenas pela fumaça que sobe das queimadas na Amazônia. É composta também pela permanência dos abismos sociais, de renda, educação e oportunidades, que os modelos tradicionais da política e da economia não são capazes de reduzir. Assim como soube, até aqui, incensar o crescimento da economia chinesa, à revelia dos danos ambientais e sociais que vem acumulando, a imprensa poderia aproveitar a evidência de que o modelo chinês não deve ser imitado e começar a prestar atenção às propostas alternativas de desenvolvimento que se oferecem ao Brasil.

Luciano Martins Costa, do Observatório da Imprensa
Publicado pela Envolverdeem 08/04/08

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