sexta-feira, 24 de agosto de 2007

JBIC financia projetos que gerem créditos de carbono

Bettina Barros
Publicado pelo
Valor Online 24/08/07

Richard Bird, do Unibanco: idéia é engordar a carteira de project finance
Foto Anna Carolina Negri / Valor

O Unibanco fechou convênio com o JBIC (Banco do Japão para Cooperação Internacional) para a criação de uma linha de financiamento exclusivo para projetos envolvendo a comercialização de créditos de carbono no Brasil.

É a primeira linha que o banco japonês fecha com essa finalidade no Brasil. O acordo disponibilizará um total de US$ 50 milhões, com prazo de até 12 anos.

O Japão está entre os três maiores emissores de gases que provocam o superaquecimento do planeta - em 2005, o país emitiu 8% a mais de gases-estufa que os níveis de 1990. Pelas regras do Protocolo de Kyoto, deveria estar diminuindo as emissões para que, até 2012, elas estejam 5% inferiores em relação aos níveis de emissão de 1990. Na prática, o país ainda tem uma diferença de 14% a ser cumprida.

Além de fazer o dever de casa, as empresas japonesas podem comprar créditos de carbono em países em desenvolvimento, através dos chamados projetos MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), previstos em Kyoto.

"O Brasil é visto como mercado potencial nesse setor", disse ao Valor Kaname Nakano, diretor-geral do JBIC, um dos três representantes do banco que vieram a São Paulo para a assinatura do protocolo com o Unibanco. "O país tem uma variedade de setores para serem explorados e expertise no desenvolvimento de projetos de MDL", acrescenta.

O Brasil tem hoje 232 projetos de MDL, que deverão deixar de emitir 204 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) - por convenção, cada tonelada de carbono equivale a um crédito.

A condição fundamental para se ter direito à linha é vender os créditos de carbono para compradores japoneses. O JBIC entra com o dinheiro, o Unibanco com sua carteira de clientes e a prospecção de novos mercados. O Japan Carbon Fund, também do governo japonês, faria a ponte entre vendedor e comprador.

Apesar de não ser uma condição exigida pelo JBIC, o financiamento também é visto como uma oportunidade para negócios do ponto de vista de interesse nipônico - além de comprar os créditos, os japoneses poderiam ser fornecedores ou compradores de produtos gerados pelos projetos, por exemplo.

Segundo Richard Bird, superintendente da área de bancos correspondentes e relacionamento com multilaterais do Unibanco, cerca de 30 projetos assessorados pelo banco estariam aptos ao financiamento. "Boa parte tem elegibilidade. Mas a idéia é atrair novos clientes, sobretudo em project finance", diz ele. A palavra final sobre a aprovação de um projeto de MDL é do JBIC.

O MDL é um de sete setores estudados pelo "Wise Men Group", grupo formado por representantes do setor privado do Brasil e Japão para o desenvolvimento conjunto de negócios.

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Reduzir emissões de gases custará US$ 200 bi ao ano

Assis Moreira
Publicado pelo
Valor Online 24/08/07

Com as emissões de gases-estufa em alta, serão precisos investimentos adicionais de US$ 200 bilhões anuais até 2030 para reduzir os níveis aos atuais, segundo estudo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC na sigla em inglês).

O Brasil precisará investir US$ 13,5 bilhões a mais por ano para melhorar a eficiência energética na indústria, agricultura e outros setores, sem contar o capital necessário para combater o desmatamento da Floresta Amazônica.

A ONU calcula ainda que US$ 9,8 bilhões a mais serão necessários por ano para geração de energia, principalmente renovável, no país. Para melhorar os transportes, a previsão é de outros US$ 2,2 bilhões, quase tudo na produção de etanol. A indústria nacional deverá desembolsar US$ 614 milhões a mais para melhorar a eficiência energética. Outros US$ 400 milhões serão necessários para tornar os prédios ecologicamente mais eficientes.

O Brasil, um dos maiores produtores agrícolas mundiais, deverá gastar US$ 550 milhões a mais por ano somente para cortar emissões no setor.

Em todo o mundo, a ONU estima que US$ 148 bilhões de um total projetado de US$ 432 bilhões anuais de investimentos devem ir para geração de energia renovável. O setor de transporte precisará de mais US$ 88 bilhões, sendo 10% para produção de biocombustível. A indústria necessitará de US$ 36 bilhões para melhorar a eficiência energética; a agricultura, mais US$ 35 bilhões; e o setor de construção, outros US$ 52 bilhões. Entre US$ 35 bilhões e 45 bilhões ainda serão necessários para o desenvolvimento de novas tecnologias.

A divulgação do estudo provocou polêmica, ontem, quando o secretário-geral da UNFCCC, Yvo de Boer, defendeu que os países ricos sejam liberados de cortar suas emissões, se pagarem as nações em desenvolvimento para fazerem isso no lugar delas.

Grupos ecológicos retrucaram dizendo que a idéia vai contra os objetivos definidos pela própria ONU para os países industriais - principais responsáveis pela mudança climática - contribuírem mais para atenuar seus efeitos.

Mas Boer insiste que os países em desenvolvimento, no rastro de sua rápida expansão econômica, precisarão da parte maior de investimentos para combater o problema. E enquanto o fluxo de investimentos para essas economias é estimado em 46% da necessidade global, ele acha que a redução de emissões por esse grupo deve ficar em 68% da redução total.

Boer insistiu na importância do mercado de carbono, que permite aos países industrializados investir em projetos de desenvolvimento sustentável nos países pobres e assim gerar crédito de corte de emissões. No ano passado, as atividades do Clean Developmento Mechanism (CDM) geraram investimentos de US$ 25 bilhões, segundo o estudo.

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Governo vincula defesa de CPMF a gastos sociais para obter aprovação

Paulo de Tarso Lyra e Arnaldo Galvão
Publicado pelo
Valor Online em 24/08/07

Mantega aos empresários reunidos em seminário do setor de infra-estrutura: "A CPMF não é tão ruim como se diz. É fácil de ser paga. A gente vai lá e pega"
Foto Uéslei Marcelino/Folha Imagem

Pressionado pelos aliados que pedem cargos e pela oposição e empresários que querem o fim da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), o governo quer mudar o enfoque do debate da CPMF: ao invés de defender a prorrogação como uma questão de equilíbrio fiscal, o Planalto vai passar a dizer que, sem ela, ficam ameaçados o Bolsa Família, os recursos para o SUS e a aposentadoria de quase um milhão de brasileiros. Um estudo preparado pela Secretaria de Orçamento e Finanças do Ministério do Planejamento e apresentado há duas semanas ao presidente Lula tentará sustentar esta argumentação. Mostra que, em quatro anos, o governo federal investiu, graças à CPMF, R$ 91,6 bilhões em Saúde, Previdência e Combate à Pobreza.

O ministro da Fazenda, Guido Mantega, contrariou em parte esta orientação, apesar de, provavelmente, ter participado de sua definição, ao falar aos empresários reunidos em seminário do setor de infra-estrutura. Disse que a prorrogação da CPMF é um dos cinco desafios para expandir o potencial de crescimento do país. E enalteceu a facilidade de arrecadação do tributo. "A CPMF não é tão ruim como se diz. É fácil de ser paga. A gente vai lá e pega", ensinou Mantega.

O documento do Ministério do Planejamento começou a ser encaminhado ontem à tarde aos líderes da base aliada, sob o título: "uma contribuição solidária da sociedade brasileira para combater a pobreza e reduzir a desigualdade social no país". O texto busca induzir os aliados a pensarem que, sem a CPMF, todas as ações sociais do governo Lula estarão irremediavelmente perdidas. No campo da Saúde, o documento mostra que, entre 2003 e 2006, foram investidos R$ 46,6 bilhões de recursos da CPMF em Saúde, dos quais R$ 32 bilhões destinados ao SUS. "O SUS é o único acesso à saúde para 80% da população brasileira", alerta o documento.

O estudo prossegue afirmando que a CPMF deve investir R$ 7,5 milhões no Bolsa Família, o que representaria 88% dos recursos do programa, beneficiando 9,6 milhões de famílias ou 40 milhões de pessoas. Já no caso da Previdência, "o maior programa social do país", a CPMF asseguraria o pagamento de benefícios mensais para quase um milhão de pessoas.

"O governo precisa se empenhar para passar dados e argumentos aos partidos da base", defendeu o presidente da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, Aloizio Mercadante (PT-SP). "A CPMF tem papel estratégico no financiamento de todos os nossos programas de assistência social", prossegue o petista.

Essa falta de visão política, na opinião de um senador aliado, permitiu que o Planalto fosse chantageado pelo PMDB e por outros partidos da base desde que a PEC da CPMF chegou ao Congresso. A chantagem começou durante a tramitação da matéria na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. O Planalto foi obrigado a nomear Luiz Paulo Conde para a presidência de Furnas em troca do relatório favorável do pemedebista Eduardo Cunha (RJ).

A emenda tramitará agora em uma Comissão Especial, mas a troca de favores está longe de terminar. "Ninguém gosta de votar matérias antipáticas ao povo. Quem apóia aumento de imposto? Essa tarefa de convencimento fica ainda mais difícil porque o governo não distribui os cargos que promete aos aliados", explicitou um líder da base aliada na Câmara.

Durante a reunião do Conselho Político de ontem, os líderes dividiram-se quanto à conveniência de se encaminhar neste momento a proposta de reforma tributária ao Congresso. A equipe econômica pretende enviar o texto em meados de setembro. "Não seria mais prudente mandar depois para não parecer que só queremos garantir a prorrogação da CPMF?" ponderou a líder do governo no Senado, Roseana Sarney (PMDB-MA).

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Auto-regulação prevalece na Europa

Assis Moreira
Publicado pelo
Valor Online em 24/08/07

Angela Mills, diretora executiva do European Publishers Council, gastou muito tempo para convencer o Parlamento e a Comissão Européia a não impor regras de conduta para jornalistas financeiros, na elaboração da Diretriz sobre Irregularidades de Mercado - que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) quer adotar no Brasil.

Ela nota que o texto final de 2003 introduziu um conjunto de regras aos quais os jornalistas devem estar "conscientes", mas criou salvaguarda para "a maioria das atividades jornalísticas". Boa parte dos governos delegou a implementação das exigências a imprensa pelo meio de auto-regulamentação. Assim, os repórteres seguem seus próprios códigos de conduta "equivalentes" a diretiva.

No entanto, o balanço de Mills é incisivo. Ela considera que o texto europeu representa "uma nova e indesejável intrusão na liberdade editorial na União Européia".

Muito depende da atitude dos governos e sua interpretação da diretiva. Exemplifica com um caso recente na República Checa, que está sendo contestado na justiça, pela qual as autoridades pediram a condenação de um órgão de imprensa que "fez um simples erro" de informação financeira.

Nesse cenário, ela vê o persistente "perigo" de a autoridade regulamentadora e os governos exigirem conformidades tão severas sobre publicações envolvendo os mercados financeiros, que leve jornalistas a se auto-censurarem pelo temor de violar a regulamentação.

Adotada pela UE em janeiro de 2003, a Diretriz sobre Abuso de Mercado tem como alvo o uso de informação privilegiada e manipulação de mercado. Proíbe a toda pessoa que detém uma informação privilegiada de usá-la, de comunicá-la a outra pessoa fora de seu ambiente de trabalho e de recomendar aquisição ou venda do papel. Depois de muita pressão, a Comissão Européia aceitou diferenciar a situação de jornalistas, desde que eles revelem qualquer conflito de interesse a seus editores que poderia deliberadamente levar a manipular o mercado para ganhos pessoais. Jornalistas agindo ilegalmente não têm nenhum privilégio especial.

Os governos tiveram quatro anos para implementar a diretiva em suas leis nacionais. Angela Mills estima que os casos de abuso de mercado e "insiders" por jornalistas tem sido muito poucos e "tratados corretamente". Mas o recente caso na República Checa alimenta temor entre certos jornalistas de que a diretiva pode asfixiá-los, dependendo de como é interpretada.

O EPC acompanha agora a discussão desencadeada pela CVM no Brasil. A entidade foi criada em 1991 precisamente para avaliar o impacto de uma proposta de legislações européias para a imprensa. Reúne presidentes e principais executivos das maiores empresas de comunicações da Europa, incluindo jornais, revistas, televisão, rádio e internet.

Para Mills, é fundamental que a imprensa no Brasil evite regulamentação sem necessidade. "Se um regime contra abuso de mercado for implementado, que salvaguardas sejam explicitadas, incluindo a liberdade de expressão. E o governo deve delegar a gestão da auto-regulamentação, incluindo a maneira como os órgãos de imprensa tratam de conflitos de interesse." Ela acha que conseguiu isso no texto europeu também graças a aliança informal entre proprietários de órgãos de imprensa e jornalistas durante os debates na Europa. "Gastei boa parte de meu tempo com os jornalistas que cobriam essa diretiva em Bruxelas", conta.

Para ela, alguns pontos tem que ficar claros: primeiro, que a imprensa financeira não ganha dinheiro do leitor que faz suas aplicações lendo os artigos, diferentemente das firmas de investimentos. Leitor não é "cliente". Assim, não há as mesmas motivações para abuso de mercado entre jornalistas, como haveria para firmas de investimentos que desejam expandir seus negócios, diz ela.

Além disso, deve ser levado em conta que a imprensa financeira opera com prazos muito curtos, às vezes em tempo real, sem tempo suficiente para conduzir o mesmo nível de verificação que um analista de investimento.

Outro ponto "vital" é que toda informação relevante deve alcançar o mercado o mais rápido possível. Do contrário, aí sim, condições para abuso de mercado e manipulação serão criadas. "Por causa disso, os reguladores devem ter muito cuidado para não interferir no livre fluxo de informação impondo exigências com restrições impraticáveis ou desproporcionais", afirma. "Se eles fizerem isso, vão de fato produzir conseqüências negativas, contrárias ao que pretendem estabelecer."

A representante do EPC nota também que "a mídia é crescentemente on-line e global, e os mercados financeiros também são globais. É muito importante que o regulamentador nacional não impeça intencionalmente a disponibilidade de toda informação financeira relevante de dentro ou fora do país, para não deixar o investidor brasileiro em desvantagem competitiva".

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Mundo animal volta com força às vitrines de Paris

Daniela Fernandes
Publicado pelo Valor Online em 24/08/07

Em tempos de grandes preocupações em relação ao meio-ambiente, os animais exóticos voltam à moda com força total na próxima estação outono-inverno na França. Crocodilos, cobras e onças já estão invadindo as vitrines, em meio às chuvas e temperaturas amenas desse verão atípico. O crocodilo será a grande vedete da próxima temporada. As marcas de luxo lançaram bolsas, sapatos e diversos acessórios com esse tipo de couro, presente também em casacos e detalhes em roupas.

É certo que os preços do material genuíno podem desestimular muitos consumidores. As bolsas em crocodilo de grandes grifes podem chegar até ? 30 mil (R$ 54 mil). Um simples par de botas da Chanel, por exemplo, custa ? 5,8 mil (quase R$ 16 mil).

Desta vez o crocodilo ganha cores que vão além do tradicional marrom, como a bolsa Samurai 1947 da Christian Dior, em couro cinza (? 15 mil), ou ainda a bolsa Trunkette da marca Céline em azul cobalto (? 9,5 mil) - duas cores que estarão bastante em voga no próximo outono-inverno.

A procura pela estampa do bicho é tão forte que a grife Hermès acaba de adquirir o controle acionário da Soficuir, especializada no fornecimento e tratamento de couros exóticos, sobretudo o de crocodilo. A Hermès já tinha 49,6% do capital da Soficuir, que faturou 56 milhões em 2006, e tornou-se o único acionista em julho. A grife francesa informou, em comunicado, que a compra permitirá à marca "reforçar sua capacidade no tratamento dos couros e assegurar seus estoques em um contexto de forte demanda, sobretudo em relação à pele de crocodilo".

A Hermès, tradicionalmente, lança acessórios em couro de crocodilo, que ganham, agora, mais destaque. Uma das bolsas mais emblemáticas da marca é o modelo Birkin, que em crocodilo custa quase ? 18 mil (R$ 48,6 mil).

As grandes marcas também lançam produtos que imitam crocodilo, em couro de verdade e de boa qualidade, que apenas reproduz o desenho da pele do animal. Dessa forma, os preços caem bastante. Um par de botas da Louis Vuitton em couro "façon croco" (ou estilo crocodilo), custa ? 770 (R$ 2 mil).

Outro réptil que desliza pelas vitrines na França é a píton, uma espécie de jibóia gigante. Além de bolsas e sapatos, o couro dessa cobra, que costuma ser mais caro do que o de crocodilo, está presente em roupas do próximo outono-inverno como os costumes da Christian Dior, que também abusa de colarinhos e mangas em pele de raposa em seus modelos da nova coleção.

Para completar o estilo da próxima estação, as estampas de onça também voltam em casacos, calças, blusas e sapatos. O último desfile de alta-costura da grife Givenchy teve ares de safári, com manequins vestidas dos pés à cabeça com roupas de onça. A passarela também mostrou muitas saias com plumas de avestruz e casacos de estilo fraque reproduzindo a couraça do crocodilo. O nome de um dos modelos da coleção Givenchy, criada pelo costureiro Riccardo Tisci, reforça bem o tom da próxima tendência: fauna. Um dos cuidados das grifes francesas é informar que couros e peles dos animais exóticos são originários de fazendas de criação - portanto, não caçados em seu habitat natural.

As marcas mais populares devem reproduzir a tendência utilizando materiais sintéticos menos nobres, mas com preços bem mais acessíveis. Falsos como "lágrimas de crocodilo", mas nem por isso menos "fashion".

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Padrão da Microsoft sofre derrota no Brasil

André Borges
Publicado pelo Valor Online em 24/08/07

Não deu para a Microsoft. Depois de meses de discussões e reuniões marcadas por bate-boca, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) decidiu reprovar a adoção do sistema defendido pela companhia, o Open XML, sugerido como padrão de comunicação para uniformizar a linguagem mundial de todos os arquivos digitais, como documentos de texto e mensagens de e-mail.

A decisão do diretor de normalização da ABNT, Eugenio Guilherme Tolstoy De Simone, foi enviada ontem ao grupo de técnicos que participaram das discussões, depois de uma tumultuada reunião realizada na última terça-feira, no Rio de Janeiro. "(...) O voto do Brasil que está sendo enviado pela ABNT à ISO é de desaprovação pelas razões técnicas apontadas (...)", informou o diretor da ABNT.

Não é uma questão meramente técnica. Agora que está definido, o voto de reprovação do Brasil segue para a ISO (sigla para Organização Internacional para Padronização), que tem coletado opiniões de vários países para definir se a proposta da Microsoft pode ou não ser uma linguagem padrão. A postura da ABNT será mais um elemento de avaliação para a decisão da ISO.

O interesse em ter o reconhecimento da ISO não se restringe à publicidade com selos de qualidade. Se a linguagem de programação é considerada um padrão pela ISO, ela passa a ser exigida, por exemplo, pela Organização Mundial do Comércio (OMC), quando esta for legislar sobre que normas técnicas vigorará entre países. Daí tanto barulho.

O objetivo da Microsoft é dar à sua proposta tecnológica o status já alcançado pelo padrão rival ODF, que já foi reconhecido pela ISO e tem apoio total de empresas como Google, IBM e Sun Microsystems, além de toda a comunidade de desenvolvedores de sistemas de código aberto, o chamado software livre. Do lado do Open XML fazem coro à Microsoft empresas como Intel e HP.

Vários países do mundo estão se posicionando a respeito do assunto. Uma das preocupações, por exemplo, é a de garantir que daqui a 20 anos os sistemas em uso sejam capazes de abrir qualquer documento de texto escrito na década de 90. No Brasil, a discussão foi marcada por polêmicas e acusações, uma celeuma que, no último momento, também envolveu a mão do governo.

Na última segunda-feira, um dia antes da reunião final sobre o tema, o diretor de normalização da ABNT, Eugenio Guilherme Tolstoy De Simone, foi até Brasília. O encontro foi articulado pelo deputado federal Paulo Teixeira (PT/SP). No Itamaraty, o diretor da ABNT se encontrou com representantes dos ministérios da Defesa, Ciência e Tecnologia, Planejamento, Casa Civil e Desenvolvimento, além do Serpro. "O governo consolidou a sua opinião e deixou claro que seu voto era contra o Open XML", disse ao Valor uma fonte que participou do encontro.

Na reunião do dia seguinte, no Rio, não se chegou a um consenso. "Foi tumultuado. Houve momentos em que os técnicos tiveram que se ausentar da sala de discussão", diz diretor de novas tecnologias aplicadas da IBM Brasil, Cezar Taurion, que participou do encontro.

O imbróglio resultou na apresentação de um documento com 63 restrições ao Open XML, entre elas as que reclamavam da inclusão de códigos fechados no sistema, o que impossibilita conhecer exatamente seu funcionamento. "Ficou claro que todos concordaram que havia problema técnicos", comenta Luiz Fernando Maluf, executivo da Sun.

Para o presidente da integradora de software L3, Leandro Lopes, que representou a Associação Internacional de Parceiros Microsoft (IAMCP), faltou maturidade. "A discussão não foi técnica. Virou um palanque, uma confusão generalizada, é uma pena."

Segundo Cesar Taurion, da IBM, "a decisão foi lógica". Todos viram que havia problemas técnicos e concordaram nisso, diz o executivo. "Não é uma questão de vitória. Nós brigamos por padrões abertos, o mundo dos sistemas proprietários está morrendo."

A resistência da Microsoft em apoiar o padrão aberto ODF reside no argumento de que se trata de uma linguagem limitada, incapaz de alcançar as especificidades de seus sistemas, principalmente os antigos. Procurada pela reportagem, a Microsoft Brasil ressaltou, por meio de nota, que "os comentários técnicos que foram objeto de consenso (...) devem contribuir para o aperfeiçoamento do padrão Open XML."

Segundo a companhia, "o fato de ter havido consenso técnico representa efetivamente uma oportunidade de evolução da norma, como parte do processo natural de elaboração de qualquer norma técnica." A empresa informa ainda que continuará a trabalhar em sua alternativa ao ODF. "O Open XML reconhece versões anteriores de formatos de documentos, permite a conversão dos documentos em ODF e vice-versa, sem que haja uma dependência a um único fornecedor para ambos os padrões."

Na última semana, o Comitê Internacional para Padrões de Tecnologia da Informação (Incits), dos Estados Unidos, rejeitou a proposta da companhia. A mesma postura foi adotada por instituições do Canadá, Índia e Japão.

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Terceiro Setor: ‘Para-mercantil’ ou ‘Neo-governamental’?

Augusto de Franco
Carta Rede Social* 143, publicada em 02/08/07

A força da sociedade civil que temos está justamente no fato dela não poder ser organizada pelas organizações da sociedade civil que temos.

Tenho afirmado, nestas cartas e em outros textos e entrevistas, que o chamado terceiro setor está hoje diante de um desafio: ou consegue superar a sua forma de organização predominante (a nova burocracia associacionista que constituiu) ou não vai mais poder cumprir um papel inovador.

É forçoso reconhecer – como não me canso de repetir – que as organizações da sociedade civil, em sua imensa maioria, ainda se estruturam como mainframes e não como networks. Quando se denominam redes, quase sempre tal denominação é indevida porquanto aplicada a estruturas verticais de poder, com topologia descentralizada e não distribuída, com baixíssimo grau de rotatividade nas suas direções e com uma burocracia que, a despeito de ser reduzida pela falta de recursos, não deixa de ser formalmente semelhante a qualquer outra burocracia baseada na opacidade dos procedimentos, na discricionariedade das decisões e na verticalidade do fluxo comando-execução. Também é forçoso reconhecer que o paradigma organizativo que adotam essas organizações ainda é aquele, digamos, das fronteiras fechadas.

Existem exceções, é claro. Mas o fato é que aquela geração de ONGs que apareceu como grande novidade no último quarto de século, não poderá mais se manter na ponta da inovação social. Se não se reciclar, a 'nova burocracia associacionista das ONGs' poderá virar, em breve uma força francamente regressiva em termos da democratização da democracia e do desenvolvimento humano e social sustentável.

Não estou me referindo à sociedade civil e sim às chamadas organizações da sociedade civil. Não ver a diferença entre as duas coisas já é um sintoma do problema que estou enfocando nesta carta.

Em geral me perguntam: então o que podemos fazer – nós, que priorizamos a atuação na sociedade civil, no terceiro setor – para dar nossa contribuição à democracia e ao desenvolvimento? Minha resposta tem sido sempre a seguinte: articulem redes de pessoas ao invés de erigir estruturas burocráticas. Não façam igrejinhas. Não construam castelinhos. Não tentem privatizar o capital social do seu entorno ou do seu setor. Capital social é um bem público: quando privatizado, estraga. E pode dar origem a certas formas perversas de sociabilidade. Sobretudo não tentem jogar usando como cacife as relações alheias, negociando a partir da apropriação da vida social das comunidades, organizando, por exemplo, um "curral de pobres" para conseguir uma verba governamental, para atuar como terceirizados na implantação de uma política de assistência social (não estou delirando: existem centenas, talvez milhares de organizações fazendo isso neste momento). E, acrescento agora, evitem se comportar como organizações para-mercantis ou neo-governamentais. É a minha opinião e vou dizer por que.

Herdeira de uma herança político-cultural não convertida suficientemente à democracia, uma parte significativa das ONGs ainda se comporta como organizações fechadas, com programas proprietários, que não compartilham seus recursos e seus conhecimentos. Mais recentemente, compelidas por razões de sobrevivência, muitas dessas organizações resolveram entrar numa onda, vamos dizer assim, de “profissionalização”, tentando imitar os modelos de gestão mais eficientes das empresas. Penso que isso, ao invés de fortalecer, vai acabar enfraquecendo a sociedade civil. As organizações do terceiro setor não têm que imitar as empresas (e, muito menos, os governos) e sim afirmar a sua identidade própria de organizações da sociedade civil, presididas por uma “lógica” e uma racionalidade diferentes daquelas que regem o mercado (e daquelas que regem o Estado).

Isso não significa, é claro, não aproveitar o conhecimento acumulado pela iniciativa privada em tudo o que diz respeito à estratégia, à gestão organizacional, à gestão de pessoas e de stakeholders e, mais recentemente, à sustentabilidade (esta última, aliás, uma área em que só agora as empresas começam a engatinhar). Mas significa que as tentativas de aproveitar esses conhecimentos ou ferramentas para a gestão do terceiro setor não podem ser bem sucedidas se simplesmente quisermos transplantá-los do segundo para o terceiro setor. O modo como o mercado trata essas questões é – e deve ser mesmo – bastante diferente do modo como a sociedade civil pode tratá-las.

Hoje parece existir um coro apontando as vantagens de aproveitar a expertise de planejamento estratégico das empresas, seus modelos de gestão e seus sistemas de governança corporativa. No entanto, tenho bons motivos para sustentar que, talvez, sejam as empresas que devam aprender agora com a sociedade civil, sobretudo quando o tema é a sustentabilidade.

Sim, as empresas estão diante de um grande desafio: preparar-se para dar conta das novas exigências da sustentabilidade num mundo onde a velocidade das mudanças é vertiginosa e onde o impacto dessas mudanças em uma aérea de atividade repercute diretamente sobre as demais áreas, gerando uma complexidade muito maior do que a verificada em qualquer outra época da história. Assim, não podem mais tratar de estratégia, gestão organizacional, gestão de pessoas e gestão de stakeholders de modo isolado, como se fossem departamentos estanques. Tudo isso agora deve ser encarado do ponto de vista sistêmico (que é o ponto de vista da sustentabilidade). Sustentabilidade, hoje, exige que a empresa atue como agente de desenvolvimento, que saiba fazer a gestão da sua rede de stakeholders, que tenha uma causa para promover o voluntariado interno e externo e que aprenda a articular politicamente não apenas seus interesses, mas também a sua causa, exercendo, para além da responsabilidade social, a sua responsabilidade política. Como se pode ver, várias dessas exigências (padrão de organização em rede, adesão a uma causa, espírito de voluntariado, exercício gratuito da responsabilidade ou cooperação) já constituíam o dia-a-dia (ou, pelo menos, preocupações) das chamadas organizações da sociedade civil antes de entrar no campo de preocupações das empresas.

Sim, as organizações da sociedade civil poderão ajudar muito as empresas nesses temas. Todavia, penso que elas deveriam resistir à tentação de se constituírem como empresas disfarçadas para prestar serviços de consultoria às empresas de verdade. Pois, na verdade, elas não podem (porque não sabem mesmo como fazê-lo) transferir seus conhecimentos, digamos, vivenciais (ou experienciais), para as empresas. Na maior parte dos casos trata-se de conhecimentos tácitos, que não estão sistematizados a ponto de permitir uma transposição não-mecânica para as empresas.

Um caso exemplar que serve para mostrar a incipiência da formulação das organizações do chamado terceiro setor é o chamado netweaving (a articulação e animação de redes distribuídas). Esse é um conhecimento importantíssimo, neste momento, para as empresas que querem fazer alguma coisa em termos da conquista de sustentabilidade, começando por aprender como se faz a gestão de redes que conectem todos aqueles direta e indiretamente interessados e afetados pela sua atuação (i. e., os seus stakeholders). No entanto, a imensa maioria (com certeza mais de 90% das ONGs e assemelhadas) não se organizam, elas próprias, segundo um padrão de rede distribuída. Ainda são, como já disse acima (e como todos sabemos), castelinhos com seus reizinhos (sim, porque é ou não verdade que seus dirigentes costumam ficar no comando para sempre ou quase, mais tempo ainda do que os Secretários-Gerais dos velhos partidos comunistas?).

Sabe-se que, dada a sua natureza multifária e a outras características de uma forma de agenciamento que só se organiza a partir da emergência, uma das características da sociedade civil é que ela aprende fazendo, não em sala e aula nem em reflexões teóricas de seus dedicados expoentes. Mas como ela poderá aprender netweaving (inclusive para ensinar às empresas) se não pratica netweaving, nem interna, nem externamente?

Outro problema é o padrão de relacionamento adotado por essas organizações, quer no interior da própria sociedade civil, quer em relação ao mercado e ao Estado.

Quando, por exemplo, uma organização do terceiro setor quer guardar a sete chaves suas metodologias ou tecnologias (achando que com isso vai assegurar sua vantagem comparativa em relação às suas “concorrentes”), então já está se comportando como uma empresa; ou melhor, já está se constituindo segundo a dinâmica própria de uma forma de agenciamento que caracteriza o mercado, não a sociedade civil. O que caracteriza o terceiro setor não é o fato de ele ser não-governamental (isso as empresas e, a rigor, os parlamentos, também são) e nem o fato de ele ser não-lucrativo (governos e parlamentos também não são lucrativos) e sim o modo como agencia os recursos e se relaciona, entre si e com os outros setores da sociedade.

Repito: se uma ONG se relaciona com suas congêneres na base da concorrência ou da competição, então ela está assumindo uma dinâmica que é própria do mercado, não da sociedade civil. Melhor seria, então, que não disfarçasse sua (verdadeira) natureza e se constituísse formalmente como uma empresa mesmo. Qual é o problema? Empresas são legítimas, são boas, não há nada de errado com elas (a não ser para as consciências que foram colonizadas pela idéia de que o lucro é um pecado ou a razão de todo mal que assola a humanidade, como sustentavam as narrativas ideológicas igualitaristas e totalitaristas). Ou será que ONGs que se comportam objetivamente como empresas não querem se formalizar como tais apenas para auferir vantagens fiscais, pagar menos impostos, como é freqüentemente acusado o terceiro setor por aqueles que não vêem razões para a existência de uma sociedade civil subsistente fora da ordem do Estado e da “lógica” do mercado (é o que pensava, por exemplo, Margareth Thatcher, repetindo, aliás, o que reza a crença econômica ortodoxa)?

Assim como a forma de agenciamento chamada Estado é normativa e a forma de agenciamento chamada mercado é competitiva, a forma de agenciamento chamada sociedade civil (ou terceiro setor) é cooperativa. Se não for, então não subsiste a própria noção de sociedade civil. Eis o ponto!

Discutindo certa vez esse assunto com meu amigo Silvio Sant’Ana, ouvi dele – e inclusive incorporei sua opinião no meu livro “Terceiro Setor: a nova sociedade civil e seu papel estratégico para o desenvolvimento” (Brasília: AED, 2003) – que a característica distintiva do terceiro setor é o fato dele contar com trabalho voluntário, o que é uma outra maneira de dizer: contar com a cooperação – uma forma gratuita de atividade, de ajuda-mútua ou de doação à uma causa fraterna, gerada, talvez, como supõe Maturana, não propriamente por uma racionalidade (no sentido de cálculo ou escolha racional) mas por uma emocionalidade que está na fundação mesmo daquilo que chamamos, stricto sensu, de ‘social’.

Sim, Silvio tem razão. Se não há voluntariado (ou se não há cooperação efetivamente praticada) em uma organização do terceiro setor, então alguma coisa está errada. Não basta ensinar aos outros como cooperar ou como promover programas de voluntariado. Isso é útil, por certo. Mas pode ser feito por uma empresa. Ademais, um velho professor de álgebra, chamado Shaeffer, com quem tomei aulas em 1968, no Rio de Janeiro, costumava dizer: “quem sabe faz, quem não sabe ensina”.

É claro que a objeção sempre levantada nesses casos é a seguinte: mas como as pessoas vão sobreviver, como os dirigentes e os profissionais das organizações do terceiro setor vão poder se dedicar a sua missão se não receberem alguma remuneração? Sempre aceitamos esse argumento como definitivo, mas não é: é abusivo (no sentido literal do termo). Não digo que não deva haver pessoas remuneradas na direção de organizações da sociedade civil (aliás, eu mesmo defendi isso, na Lei das OSCIPs). O sinal de que alguma coisa está errada aparece quando todos são remunerados e, mais do que isso, se comportam como se fossem funcionários de uma empresa... e, conseqüentemente, a própria organização se comporta como uma empresa. Isso me faz lembrar aquela anedota: tem rabo de porco, focinho de porco, orelha de porco, pé de porco, mas... (se não é feijoada), por que não deveria ser porco?

Estou convencido do seguinte: as organizações do terceiro setor (integrantes daquela parcela da sociedade civil que gosta de se apresentar como “sociedade civil organizada”), não vão conseguir sair dessa ambigüidade se não modificarem seus padrões de organização. Organizações piramidais, verticais, hierárquicas, exigem burocracias. Burocracias exigem mais burocracia. Não é uma opção. É uma necessidade que se impõe pela dinâmica de funcionamento que acompanha o padrão de organização.

Por isso venho dizendo: querem fortalecer a nova sociedade civil (aquela composta por milhões de cidadãos desorganizados segundo um ponto de vista tradicional, mas cada vez mais conectados) que está emergindo nos últimos anos? Então não construam organizações hierárquicas, façam redes. Agora, se o problema é ganhar a vida – e devemos todos ganhá-la com nosso trabalho – então fundem empresas ou prestem consultorias como pessoas físicas, ministrem palestras, dêem aulas, escrevam livros, exerçam uma profissão liberal ou arranjem um emprego. Não será isso que impedirá a nossa atuação no terceiro setor.

E se querem continuar, vamos dizer, atuando profissionalmente no terceiro setor, trabalhando em um centro de estudo ou pesquisa, em um clube, em uma associação, então se esforcem para praticar a cooperação, para agregar e promover trabalho voluntário, para se organizar e se relacionar segundo um padrão de rede e para radicalizar a democracia onde ela pode ser radicalizada (no nível local da sociedade civil, no âmbito comunitário). É claro que cabe muito mais coisa no terceiro setor. Mas, do ponto de vista de quem está comprometido com o desenvolvimento humano e social sustentável, a meu ver é isso que justifica – em termo racionais – querer ficar nele. Reconheço, entretanto, que as pessoas que se envolvem com organizações do terceiro setor não o fazem, em sua maioria, a partir de uma escolha racional e sim co-movidas por uma emocionalidade cooperativa, o que é bem bacana, mas não refresca muito, no sentido de que não altera a realidade enfocada nesta carta. Ou seja, a despeito dos motivos que levam a maioria das pessoas a desenvolver uma atuação no terceiro setor serem maravilhosos, ao se organizarem para tanto freqüentemente essas pessoas adotam padrões de organização que não são tão maravilhosos assim.

Vivi profissionalmente, durante vários períodos, recebendo remuneração pelo meu trabalho em organizações da sociedade civil. De uns tempos para cá, porém, não tenho feito mais isso. Mas continuo atuando no terceiro setor. Como? Ora, como cidadão, como participante de redes. Tudo indica que a alternativa organizativa mais inovadora para o terceiro setor são as redes de pessoas (e já expliquei porque, em muitas cartas como esta). Redes (e me refiro a redes propriamente ditas, redes de pessoas, com topologia distribuída, não a holdings ou frentes de instituições abrigadas sob o guarda-chuva da palavra ‘rede’, que está na moda) são o modo de organização compatível com a “lógica” e a racionalidade da sociedade civil. Aliás, o próprio conceito de sociedade civil tende a ser substituído pelo conceito, muito mais potente em termos analíticos e mais preciso em termos descritivos, de rede social.

Há ainda uma outra objeção, também freqüente, que é a seguinte: mas as redes são informais! Como vamos abrir uma conta bancária, tirar um CGC, contratar funcionários, emitir nota fiscal, receber doações, não pagar imposto de renda e outros impostos e, em alguns casos, ser dispensados da quota patronal à previdência social?

Bom, em primeiro lugar é preciso saber se precisamos mesmo dessas coisas. Em muitos casos, sim. Em outros, não. Se estamos naquele tipo de organização que tem tudo de porco mas não quer ser porco, não é muito justo que recebamos alguns desses benefícios. Além disso, uma empresa sempre pode ter parte dessas coisas. Mas outra parte, que se refere à renúncia fiscal e, em qualquer caso, a indevida isenção da quota patronal (indevida sim, pois em um sistema contributivo universal ninguém deveria ter o direito de não-contribuir, mesmo a pretexto de salvar a espécie humana), seria necessário examinar cuidadosamente os motivos capazes de justificar o recebimento desses benefícios. Uma organização que não pratica a cooperação, que não conta com trabalho voluntário, que se estrutura e funciona internamente como uma empresa e, ainda por cima, que compete por recursos com suas congêneres no mercado, não deveria ter direito a essas coisas. Em nome de quê? De suas boas idéias para a humanidade? Ora, tenha paciência!

De qualquer modo, se articulamos e animamos uma rede e, por algum motivo, precisamos de uma organização formal para cumprir exigências formais, nada impede que construamos uma entidade legalmente reconhecida (ou várias) para tais efeitos (formais). O problema não é de ordem legal, mas diz respeito ao padrão de organização que adotamos e, não raro, tem a ver com questões de poder e, em alguns casos, de apropriação privada, ainda que indireta, por meio do acesso diferencial a alguma vantagem, serviço ou recurso, de eventuais superávits produzidos ou valores recebidos (a título de doação, fomento ou por qualquer outra forma). Quando há patrimônio envolvido, como no caso de algumas fundações privadas, aí sim as exigências legais vão além da formalidade e tornam-se de fato necessárias, inclusive para salvaguardar direitos.

Ou seja, não estou propondo nenhum tipo de desconstituição do imenso conjunto de organizações hierárquicas e burocráticas da sociedade civil que existe hoje. É óbvio que é melhor ter esse conjunto de organizações do que não ter nada e a vantagem disso não está, como se poderia pensar, nas virtudes das formas de organização que existem, mas na sua diversidade, na sua multiplicidade, na sua pulverização e na impossibilidade prática de organizar tal conjunto top down. Em outras palavras, a força da sociedade civil que temos está justamente no fato dela não poder ser organizada pelas organizações da sociedade civil que temos. Ainda bem. Como escreveu o ficcionista Frank Herbert – uma pérola que encontrei em “O Messias de Duna” (1969) e que cito freqüentemente – “não reunir é a derradeira ordenação” (o que é uma forma literária mais sofisticada de dizer que ‘o povo desunido jamais será vencido’, como brincávamos no início dos anos 90, os que percebíamos os riscos de querer representar, por meio de uma dúzia de organizações da sociedade civil, o conjunto da sociedade civil supostamente “organizada”).

Mas o problema que coloquei aqui não diz respeito à conservação do que existe e sim à inovação. O que afirmei no início desta carta é que se ficarem estacionadas nos padrões de organização que vêm adotando, as organizações da sociedade civil não cumprirão mais um papel inovador. Não apenas porque deixarão de inovar internamente em termos organizacionais e sim porque não terão experiência de inovação nas suas relações dentro da própria sociedade civil e com os outros setores da sociedade. Não descobrirão coisas novas em relação à natureza e a dinâmica do próprio setor a que pertencem. E não contribuirão para fortalecer a nova sociedade civil que está emergindo.

Se quiserem cumprir tal papel inovador, as organizações da sociedade civil têm que voltar os olhos para o cidadão, desorganizado do ponto de vista tradicional, mas muito mais conectado do que em qualquer outra época da história, que está emergindo neste dealbar do século 21. É incrível como, quando se fala de sociedade civil, esquece-se de que ela é composta por cidadãos. Fala-se ainda de "sociedade civil organizada" como se isso fosse grande coisa diante de milhões de pessoas que podem opinar e participar, não arrebanhadas ou acarreadas (esse é um bom termo, usado pelos mexicanos, que tiveram quase um século de experiência no assunto) por organizações hierárquicas, mas diretamente, uma-a-uma, personalizadamente. Não há outra maneira de fazer isso senão apostando nas redes, nas redes que conectam pessoas com pessoas, segundo uma topologia distribuída (e não centralizada ou descentralizada), peer-to-peer.

Se quiserem cumprir tal papel inovador, as organizações da sociedade civil têm de mudar as suas relações com suas congêneres (as outras organizações da sociedade civil). Não podem contribuir para transformar o campo social em uma esfera de competitividade. Quem tem de ser competitivo é o mercado (e a economia é que deve ser de mercado) não a sociedade. E mercados competitivos, ao que tudo indica, exigem como base uma sociedade cooperativa (por razões econômicas mesmo, como a diminuição das incertezas que afetam os investimentos produtivos de longo prazo, com a redução dos custos de transação e, inclusive, da insegurança jurídica). É o que vêm revelando, nos últimos quinze anos, todas as teorias do capital social (que é apenas uma outra denominação para rede social). Uma sociedade competitiva constitui, em geral, péssimo ambiente para um mercado competitivo. Portanto, temos aqui um argumento adicional, em termos do desenvolvimento, para trabalhar estrategicamente em prol da reprodução ampliada da cooperação, sobretudo naquela única esfera da realidade social que produz mais capital social do que é capaz de consumir, ou seja, a sociedade civil.

Se quiserem cumprir tal papel inovador, as organizações do terceiro setor têm que começar a modificar a sua relação com os outros setores, com o segundo setor (o mercado) e com o primeiro setor (o Estado). Não podem ficar querendo prestar serviços ao mercado como se fossem entes de mercado e, ao mesmo tempo, receber benefícios do Estado como se não fossem entes de mercado (olhaí “o porco falando do toucinho!”).

Nesta carta me concentrei na análise do caráter para-mercantil que algumas ONGs vêm adotando. Mas haveria também muito a dizer sobre o seu caráter neo-governamental, sobretudo nestes últimos anos, em que surgiram numerosas organizações burocráticas da sociedade civil para celebrar convênios e termos de parceria com um governo federal que queria favorecê-las por razões políticas. Aqui, porém, já resvalamos para o tema da ‘corrupção de Estado’ como meio de conquista de hegemonia. Voltarei ao assunto algum dia.

Promover o desenvolvimento humano e social sustentável e ensaiar a democracia no sentido “forte” do conceito, na base da sociedade e no quotidiano dos cidadãos, constituem os dois papéis principais – e mais do que isso, papéis únicos, insubstituíveis – que podem ser cumpridos pelo terceiro setor. Seria uma lástima se, por incompreensão dessas tarefas estratégicas ou por razões de sobrevivência colocadas por uma visão míope de sustentabilidade, o terceiro setor passasse a se comportar como uma espécie de ‘para-mercado’ ou conjunto de organizações ‘neo-governamentais’ (como brincou certa vez Manuel Castells e o critiquei na época, mas agora vejo que ele tinha alguma razão).

* ‘Carta Rede Social’, ex-‘Carta Capital Social’ (e antiga ‘Carta DLIS’) é uma comunicação pessoal de Augusto de Franco enviada quinzenalmente, desde 2001, para mais de 5.000 agentes de desenvolvimento e outras pessoas interessadas no assunto, de todo o Brasil.

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