segunda-feira, 23 de julho de 2007

Os caminhos do dinheiro usado em iniciativas sociais

Rita Monte
Publicado pelo
Mapa do 3º Setor

“Hoje a única área de financiamento do ‘Terceiro Setor’ em franca expansão é a venda de produtos e serviços”. Se você é gestor de uma organização ou projeto social, já deve ter pensado nessa frase. Quem a diz é Fernando Rossetti, secretário-geral do Gife, ao falar sobre a origem do dinheiro que financia ações do campo social – de onde vem ou de onde deveria vir? Não sem crítica, Rossetti apresenta um cenário de mercado para a sociedade civil e o chamado “Terceiro Setor”, ao enxergar “um momento darwinista para o setor: as ONGs mais fortes sobreviverão, e elas necessariamente são as profissionalizadas. Para uma organização sem fins lucrativos sobreviver, ela é obrigada a ter um plano de negócios, se não ela vai quebrar. A sociedade civil transformou-se em um mercado – costumo dizer, ironicamente, que é um mercado do bem”, completa Rossetti.

O panorama colocado carrega o desenrolar da sociedade civil organizada no Brasil, trazendo um conceito cada vez mais presente entre dirigentes de organizações sociais e financiadores: a auto-sustentabilidade. Em um movimento de fragilização do modelo tradicional de financiamento do campo social, que colocava fora da organização as principais fontes de recursos, a criação de projetos de geração de renda parece surgir como “a” solução para a sobrevivência das organizações sem fins lucrativos – ou, como diz a lei civil, com fins não econômicos, como frisa Francisco Galdino, superintendente da organização mineira Fundação Projeto Sorria, “porque lucro temos que ter, para ser revertido para a própria organização”.

Fazendo um paralelo com o desenvolvimento do campo social no país desde a década de 90 – especialmente tocante às fontes de recursos –, Galdino conta a história da Fundação Projeto Sorria, organização que presta serviço gratuito de prevenção e ortodontia a crianças de zero a 7 anos, tendo atendido mais de 7 mil crianças e suas famílias e que, em 16 anos de existência na cidade de Ouro Preto, transformou sua visão sobre a dependência com relação a financiadores. Galdino começa:

“O maior financiador, por anos, foi o Poder Público local, que subvencionava a Fundação com um valor mensal destinado a cobrir não só o custo do Projeto Sorria, mas o próprio custeio institucional – temos a despesa mensal de R$ 60 mil para pagar o salário de 43 funcionários e manter 8 unidades de atendimento de boa qualidade. Com o tempo, avaliamos que a Prefeitura alterava a política de ‘doar’ de acordo com o ponto de vista do governante: ficamos dependentes dessa situação – a subvenção chegou a ser da ordem de 60% do nosso orçamento. E isso não podia mais continuar.
Em 2007, começamos a mudar o pensamento: conversamos com a Prefeitura, mostrando que a ONG presta serviço. Como a Fundação cumpre seu dever social realizando ações para a comunidade, nada mais justo que receber dinheiro por isso. Então, definimos valores para essas ações (valores, claro, abaixo dos praticados pelas iniciativas privadas) e fizemos um contrato administrativo de prestação de serviço. Prestamos um trabalho e recebemos por ele”, relata Galdino.

Fernando Rossetti expande esse cenário e atesta as mudanças nas relações sociedade civil/Estado no Brasil que, atualmente, permitem contratos desse tipo: “de 1990 para cá, essas relações se transformaram: hoje o Estado se relaciona financeiramente com a sociedade civil associando-se ao ‘Terceiro Setor’ na execução de políticas públicas, como o caso do Comunidade Solidária, do Fome Zero”, explica.

Além de ter oportunidade de mudar a qualidade da relação com seu principal financiador – a Prefeitura de Ouro Preto –, a Fundação Projeto Sorria investiu em um negócio próprio. Galdino continua:

“Quando detectamos que as empresas também mudaram sua política de financiamento – passaram de doações para aproveitamento dos incentivos fiscais destinados a projetos específicos –, ficamos alertas. No fim de 2005 começamos a pensar em algo que a Fundação pudesse fazer para ser auto-sustentável. Diante dessa situação de vulnerabilidade frente aos financiadores – estávamos sempre nas mãos de alguém para continuar nossas atividades –, fomos premiados por um empresário local com a idéia de montar um negócio: produção e venda de produtos de higiene pessoal e cosméticos. A idéia era boa: os sabonetes são produto de alto valor agregado, vendem bem em uma cidade turística, têm o potencial de levar o nome de Ouro Preto para fora, sem falar que quando o produto é feito por uma ONG, as portas se abrem.... Fizemos um plano de negócio que prevê tudo, até exportações para a Europa, realizamos campanha publicitária (desenvolvemos um selo para indivíduos e empresas consumidoras – chamamos nossos consumidores de “parceiros”) e mostramos para o comércio e para as indústrias locais que aquele produto não almeja o lucro para as pessoas da Fundação, mas que reverte para o sustento da própria organização. Na fábrica geramos 7 empregos diretos, mais 3 a 4 estágios em acordo de cooperação técnica com Universidade Federal de Ouro Preto – alunos e professores da faculdade de Farmácia são os responsáveis pelo controle de qualidade de nossos produtos. Em até 4 anos, a idéia é sermos auto-sustentáveis, embora não veja que apenas nosso projeto de geração de renda seja o responsável por nos manter – mas ele será a principal fonte”, finaliza Galdino.

A Fundação Projeto Sorria é um bom exemplo de organização que almeja e caminha para um lugar de maior auto-sustentabilidade. Mas o que implica ser uma organização auto-sustentável? Haveria sombras nessa condição? Daniela Nascimento Fainberg, fundadora do Instituto GerAção e coordenadora do Programa Nova Geração, voltado ao desenvolvimento pessoal e social de jovens privilegiados, traz alguns elementos que podem passar despercebidos no debate, e pondera:

“Não acredito que toda organização da sociedade civil deva ser auto-sustentável, se auto-sustentabilidade significar desnecessidade de recursos externos. Nesse sentido de gerar os próprios recursos, acredito que a organização deve depender de outros recursos, inclusive dos externos: se a organização existe na sociedade, se sua causa é de fato importante, então não só ela deve contribuir para que sua missão seja cumprida. Cabe à organização mostrar a relevância de seu trabalho para que a sociedade possa cobrá-la. A participação de diversos atores no orçamento da organização, além de ser financeiramente saudável e importante, é essencial para aproximar esses sujeitos da organização e viabilizar a própria participação desses atores na sociedade. Além do que, auto-sustentabilidade muitas vezes pode se tornar um isolamento. E aí surge uma outra questão: a não-colaboração entre as organizações sociais. Isso pode advir de uma ‘concorrência’ pelos mesmos recursos, mas uma organização social deveria pensar em qual sua relevância para aquilo que lhe é único, e não seguir a linha do ‘quanto mais organizações sociais no Brasil, melhor’: uma organização pode estar duplicando o trabalho de outra”, acredita Daniela.

Para a gestora, sustentabilidade e auto-sustentabilidade têm um significado mais amplo que o que tende a se colocar num contexto de mercado (concorrência por recursos, enxugamento de fontes, desenvolvimento de negócios próprios). Para ela, “sustentabilidade não diz respeito apenas à dimensão da sustentação financeira de uma organização, mas também à capacidade de desenvolvimento e revisão constante de seu projeto institucional. É uma combinação da capacidade da organização social de obter receitas ‘próprias’ com a de acessar fontes de financiamento públicas, privadas e não-governamentais nacionais e internacionais. Ao falar em auto-sustentabilidade, também, entramos em uma discussão anterior sobre qual é a função da organização: ao identificá-la, podemos enxergar se um negócio próprio cabe ou não”, comenta. Seguindo essa linha de raciocínio, Daniela inclui na construção da sustentabilidade o fator da qualidade das relações com financiadores externos e o que isso pode dizer sobre o potencial de transformação da realidade social. E muda o lugar de onde enxerga a sustentabilidade das organizações sociais, agora falando a partir de uma distância, promovida por ambos os lados, entre doador e organização beneficiária. Daniela pontua:

“Muitas vezes vejo no novo doador impaciência e até uma certa arrogância (por estar na lógica do mercado, com muito mais ferramentas, com modelos eficientes de gestão, querendo resultados rápidos etc). Mas, também, vejo uma certa desconfiança legítima. Afinal, quem acredita as organizações da sociedade civil? Há iniciativas isoladas e louváveis, como o Mapa do Terceiro Setor do CETS, o Prêmio Bem Eficiente, mas, em geral, falta credibilidade das ONGs frente à população – e por quê frente ao doador isso seria diferente? Por essa razão vejo nas organizações sociais um papel de educar esse doador, mas parece que esse lado ainda é frágil. Ouço muito a fala ‘quero uma relação mais duradoura com o financiador, para fazermos juntos’, mas o que a organização faz para isso? Pede recursos, apresenta relatórios e resultados e, de vez em quando, aparece no escritório do doador? “, provoca Daniela. E arremata:

“Esse lado de educar o doador é muito novo. Muitas vezes o doador não quer, mas também, muitas vezes, quem não quer esse papel é a própria organização beneficiada. Para mim, se quisermos realmente transformar algo, a grande chave está na relação da organização beneficiária com o doador, e vice-versa. Do lado do doador, se só pensar em resultados a curto prazo e quantitativos, não se muda o status quo de ninguém. E do lado da organização social, ela deve ter essa leitura: ‘o que eu dou em troca desse recurso? O doador faz isso porque é bonzinho?’. Se queremos que a realidade realmente mude, devem haver esforços conjuntos da organização com seus doadores e com outras organizações semelhantes tanto no sentido de gerar credibilidade para o trabalho realizado (pensando em modos de monitorar, em que tipos de resultados querem, em como o trabalho pode ser mais bem realizado) como no sentido de impactar melhor a realidade trabalhada. Por que se for para manter o que temos....”, finaliza, reticente.


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