sexta-feira, 4 de julho de 2008

O duelo na orquestra

John Neschling rege a Osesp: round mais recente da cena musical ocorrerá neste mês com os 50 concertos do Festival de Campos do Jordão e o projeto Osesp Itinerante, que terá 54 eventos
Foto Rodrigo Paiva/Folha Imagem

Música é brinquedo caro. Ainda mais a música sinfônica. Orquestras de até 120 músicos custam muito e não há como fugir da tutelagem do poder público. No entanto, como o poder público pode mudar de mãos a cada quatro anos, renova-se sempre o drama: corre-se o risco de serem enterrados projetos importantes. No caso da Osesp, é indiscutível que a continuidade do PSDB no governo do Estado foi um dos fatores determinantes para seu sucesso na última década. Outra razão foi a vontade do governador Mário Covas (1930-2001), que abriu os cofres para tornar realidade o projeto de John Neschling - os mesmos cofres que permaneceram trancados por muitos anos para Eleazar de Carvalho (1912-1996).

Convergiram, então, alguns vetores formidáveis. Em primeiro lugar, o projeto de Neschling era de fato consistente e inovador na cena brasileira - o que exigia, claro, alto volume de recursos. Os mais de 11 mil assinantes da temporada 2008 são prova do êxito. A orquestra consolidou-se artística e socialmente e é modelo para a América Latina. Tudo isso, entretanto, ocorreu porque houve estabilidade política: foram dez anos de navegação tranqüila até o confronto com a gestão Serra, após a recusa de Neschling a se apresentar na Virada Cultural em São Paulo.

Mas, na história da música, esse é apenas mais um capítulo dos muitos que relatam choques e adulações dos músicos com o poder público. Isso já ocorreu, por exemplo, com Johann Sebastian Bach (1685-1750). Insatisfeito em seu emprego em Weimar, por causa de brigas com as autoridades, aceitou novo posto em Köthen, mas se "esqueceu" de avisar os antigos patrões. Com a família já instalada, recebeu ordem de prisão e permaneceu numa cela por três semanas. Franz Joseph Haydn (1732-1809) tinha espinha dorsal mais maleável. Sabia que um de seus patrões, os nobres Esterhazy, adorava o som de um instrumento de sopro, o barítono, e compôs 123 trios para ele. No século XIX, o exemplo mais formidável é o de Richard Wagner (1813-1883), heterossexual convicto que não hesitou em freqüentar os lençóis do rei Ludwig da Baviera (1845-1886) a fim de conseguir verba para a construção de Bayreuth.

Maestros costumam sentir-se comandantes naturais desses agrupamentos de mais de uma centena de músicos. Não por acaso, os franceses usam a palavra "falange" para qualificar os naipes da orquestra, com claro sentido militar. A moda começou com Hans von Bülow (1830-1894), no século XIX, e se acentuou pelo século XX, quando se sucederam nomes como Wilhelm Fürtwangler (1886-1954), Sergei Koussevitzky, Leopold Stokowski (1882-1977) e Arturo Toscanini (1867-1957). Os últimos leões dessa estirpe foram Herbert von Karajan (1908-1989) e Leonard Bernstein (1918-1990), mas a bandeira ainda é defendida por Daniel Barenboim, Simon Rattle e Lorin Maazel.

No Brasil, o primeiro exemplo é também uma exceção que confirma a regra. O compositor Carlos Gomes (1836-1896) continuou leal ao Império, mesmo depois de sua queda, em 1889. Durante anos, o imperador Pedro II o manteve financeiramente na Itália. Quando o primeiro presidente, Deodoro da Fonseca, lhe pediu que compusesse o hino da República, ele se recusou, declarando: "Seria um ato de desrespeito ao imperador." Inteiramente marginalizado, acabou em Belém do Pará, onde morreu em setembro de 1896. Heitor Villa-Lobos (1887-1959) descobriu que era getulista desde criancinha quando percebeu que o ditador poderia viabilizar seu sonho de musicalizar o Brasil via canto orfeônico. Até Camargo Guarnieri (1907-1993) andou escrevendo planos para a música no Estado Novo.

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O poder público não deve continuar apostando em projetos, mesmo de celebrada qualidade artística, que atingem poucas pessoas
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Nos últimos 70 anos, há pelo menos três comandantes que se revezaram no exercício do poder máximo na vida sinfônica. O primeiro foi Eleazar. Formou a rara dupla de regentes assistentes de Sergei Aleksandrovich Koussevitzky (1874-1951), na Sinfônica de Boston, na década de 1940. Foi com o russo que ele aprendeu as artes ditatoriais da regência. Eleazar foi titular da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), de 1952 a 1968, e tinha como assistente um jovem chamado Isaac Karabitchevsky. Os dois romperam depois que Karabitchevsky assumiu o posto do titular, quando este viajava. Eram os anos de chumbo da ditadura militar. Jamais voltaram a se falar.

Entre 1963 e 1968, Eleazar foi também titular da Orquestra de Saint Louis, nos EUA. Em 1972, assumiu a direção da Osesp. Teve longo reinado, justíssimo do ponto de vista artístico, mas segurou-se mesmo por causa do apoio do regime militar. Nesse período, vestiu o manto de imperador da música sinfônica brasileira: era simultaneamente titular da Osesp, da Orquesta Sinfônica de Porto Alegre e da Orquestra da Paraíba. Dois herdeiros diretos desse modelo são Karabitchevsky e Roberto Minczuk, ex-assistente de Neschling na Osesp. O primeiro é, ao mesmo tempo, titular da Orquestra Petrobras (Rio), da Ospa e da Orchestre du Pays de la Loire (França). Minczuk, ruidosamente demitido por Neschling, é titular da Sinfônica de Calgary (Canadá) e acumula a direção da Orquestra Sinfônica Brasileira e da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal, ambas no Rio. Também tem um pé em São Paulo como diretor artístico do Festival de Campos do Jordão.

O problema é que as cabeças dos que mandam na vida musical sinfônica brasileira, com raras exceções, estão demorando para se atentar aos novos tempos. Agem como Toscaninis e Karajans. O método não funciona mais. Num momento em que as orquestras européias e americanas tentam se reinventar, ainda se aplica aqui uma receita com data de validade vencida. Filarmônicas como as de Los Angeles, Nova York e Berlim tornam disponíveis seus concertos na internet e chegam a ter selos próprios (caso da Sinfônica de Londres). Querem sangue novo. Escolhem regentes jovens, de menos de 30 anos, como a Filarmônica de Los Angeles acaba de fazer com o venezuelano Gustavo Dudamel.

O poder público dificilmente continuará apostando em projetos musicais, mesmo de celebrada qualidade artística, que atingem poucos. Mesmo quando se tem 11 mil assinantes, como é o caso da Osesp. Ainda assim, eles custam caro em relação a um orçamento anual acima de R$ 50 milhões. O Metropolitan de Nova York monta esquemas para transmissão simultânea de suas montagens líricas para cinemas de cidades americanas em tempo real. Festivais como os de Lugano, comandado por Martha Argerich, e de Aspen, nos EUA, tornam disponíveis a audição online da íntegra de todos os concertos na internet. Esses são esforços importantes e viáveis para atingir públicos maiores. E não custam caro.

O round mais recente da cena musical ocorrerá neste mês. De um lado, o Festival de Campos do Jordão, sob a batuta de Minczuk. Serão 50 concertos públicos na Serra da Mantiqueira, a partir deste fim de semana, reunindo estrelas brasileiras, como o pianista Nelson Freire e o violoncelista Antonio Meneses, e internacionais, como os maestros Kurt Masur e Ronald Zollman. De outro, o projeto Osesp Itinerante, que leva concertos ao ar livre, com o próprio Neschling, ao interior do Estado. Desde quinta-feira e até o fim deste mês, serão 54 eventos com a estimativa de público de 72 mil pessoas. Quem vencerá? Com certeza, a população. Às vezes, as brigas podem não acabar bem para os interessados diretos, mas provocam o efeito contrário e geram benefícios públicos. A música agradece.


João Marcos Coelho, para o Valor, de São Paulo
Valor Online, 04/07/08

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