quarta-feira, 5 de março de 2008

Bolsa-eletrodoméstico

O discurso oficial agora é que o dinheiro do Bolsa-Família aumentaria a demanda por bens duráveis, o que levaria à ampliação de fábricas e ao aumento de empregos. Balela. Mesmo se fosse verdade, o consumo cresceria nas áreas carentes e a produção, nas áreas já afluentes, perpetuando as desigualdades.

Todos são testemunhas de que, quando o Bolsa-Família foi lançado, o objetivo era matar a fome de 54 milhões de brasileiros. Meus leitores são também testemunhas de que, desde o início, venho dizendo que não existem 54 milhões de famintos. Pois bem, uma visita à página do Ministério do Desenvolvimento Social (aqui) vai surpreender. Ali, o governo anuncia que vários estudos comprovam que o Bolsa-Família tem ajudado os beneficiários a comprar eletrodomésticos. Isso mesmo, nada de arroz, feijão e carne, isso tudo que há muito já está na mesa dos pobres brasileiros, como provou a Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE; o que tem sido comprado é geladeira, microondas, máquina de lavar, fogão, liquidificador, forno elétrico, televisão e DVD.

Rosa Maria Marques, da PUC-SP é citada dizendo que, no passado, todo dinheiro extra era usado pelos pobres na compra de alimentos, mas que isso mudou, graças ao efeito multiplicador do Bolsa-Família: "Com o passar do tempo, as famílias ganharam segurança de que vão receber o benefício e, assim, puderam destinar parte de sua renda para a compra a prazo de eletrodomésticos." Rosa cita outros fatores para explicar o crescimento do consumo daqueles bens, como a elevação constante do salário mínimo, a estabilidade monetária , o aumento do número de trabalhadores com carteira assinada e a ampliação do crédito consignado, mas a ênfase do press-release do ministério é a injeção de recursos do Bolsa-Família, R$ 10,9 bi previstos para este ano.

O release cita também Felícia Madeira, do Seade (São Paulo), para quem oscilações no orçamento sempre impediram que famílias pobres fizessem gastos que necessitassem de um horizonte longo, fato remediado agora pelo Bolsa-Família: "Como existe a garantia de que o dinheiro virá, a pessoa se planeja e pode abrir um crediário para comprar um eletrodoméstico ou um equipamento para trabalhar."

O ministério dá exemplos. A catadora de lixo Rosineide dos Santos, 47 anos, de Maceió, com três filhos, recebe R$ 76 do Bolsa-Família, mas declara uma renda total de R$ 200. Com isso, pegou um empréstimo de R$ 500 no Banco do Cidadão, uma instituição que opera com micro-crédito para empreendimentos populares. O release diz que ela já tem fogão, liquidificador, cafeteira e forno elétrico, mas que, assim que saldar a dívida, pretende comprar uma televisão. Ou seja, não usa o Bolsa-Família para se alimentar nem o Banco do Cidadão para um pequeno empreendimento: usa para aumentar a conta de luz. Patrícia Belmira Henrique, de 43, manicure mineira, recebe R$112,00 do Bolsa-Família. O dinheiro, diz o release, ajuda a pagar a máquina de lavar roupa. "Estou feliz, porque é a minha primeira máquina de lavar. Antes, tinha que lavar a roupa na mão. Dava um trabalho enorme."

O release cita ainda o economista Cícero Péricles de Carvalho, da Universidade Federal de Alagoas, para quem o Nordeste está se transformando num cenário de muitos investimentos produtivos. O release prossegue: "A explicação para esse crescimento, além da diminuição das desigualdades regionais, vem sempre da mesma origem: as transferências de renda federal crescentes e os investimentos sociais que impactam sobre a maioria da população nordestina." O texto conclui, orgulhoso, citando o caso de Alagoas, que há 45 meses bate recordes de consumo popular, sem, porém, "ter um crescimento econômico que justifique tamanha elevação de compras". A razão, diz o texto, é clara: os R$ 2 bi que a Previdência dá aos aposentados de lá (o dobro do que dava em 2002) e os R$ 300 milhões do Bolsa-Família distribuídos por ano a mais da metade da população do estado.

Aposentadoria e Bolsa-Família. Há futuro nisso?
O discurso oficial agora é que o dinheiro do Bolsa-Família aumentaria a demanda por bens duráveis, o que levaria à ampliação de fábricas e ao aumento de empregos. Balela. Mesmo se fosse verdade, o consumo cresceria nas áreas carentes e a produção, nas áreas já afluentes, perpetuando as desigualdades. Na realidade, o programa transfere, mas não gera renda: o consumo só aumentaria se a propensão de consumir dos beneficiários do Bolsa-Família fosse maior do que a propensão dos que pagam o imposto que torna o programa possível, o que é improvável. O contribuinte, sem o imposto, gastaria o dinheiro em alguma coisa. Assim, trata-se de uma soma de resultado zero, não havendo aumento de produção. O programa distribui renda? Sim, mas de uma maneira não sustentável: o efeito cessará assim que o programa tiver um fim. Distribuição sustentada de renda só se obtém educando o povo, para que se possa abastecer de gente qualificada uma economia crescente.

Ninguém pode ficar contrariado sabendo que pessoas pobres, na ausência de fome, estão comprando eletrodomésticos. É bom olhar a PNAD, como faz o release, e constatar que entre 2002 e 2006, nas faixas de renda mais baixas, cresceu muito o número de lares que tem esses bens. Mas é angustiante olhar os dados das provas nacionais e internacionais que medem o conhecimento de nossas crianças e constatar que tudo vai de mal a pior. Se não há fome, por que gastar R$10,9 bi com o Bolsa-Família em vez de aplicar a maior parte disso em educação? Para aumentar artificialmente a venda de eletrodomésticos em áreas carentes?

Essa política condenará as crianças de hoje a continuar, como os seus pais, a depender do Bolsa-Família para ter um microondas, enquanto um investimento maciço em educação faria delas seres independentes, produtivos, indispensáveis para chegarmos ao bom futuro.

Ali Kamel
Publicado pel'O Globo em 04/03/08

Mais...



Acesse esta Agenda

Clicando no botão ao lado você pode se inscrever nesta Agenda e receber as novidades em seu email:
BlogBlogs.Com.Br