quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Financiamento internacional - Quem define a agenda?

Quem define a agenda: o fundador ou o beneficiado? Esta pergunta é tão velha quanto o financiamento. No entanto, recentemente mudou-se a forma de discuti-la. O ímpeto, dado nas últimas rodas de discussões, se deve ao surgimento do filantrocapitalismo ou “nova” filantropia, um debate que tem sido energizado pela publicação do livro de Michael Edwards: “Simplesmente Um Imperador a Mais”.

“Quem define a agenda?” é uma pergunta retórica. Como disse Firoze Manji editor da revista “Pambazuka News”: “Somente os financiadores têm dúvidas sobre a resposta a esta pergunta”. Júlia Unwin, no “The Grantmaking Tango”, [1] mostra que as decisões dos financiadores têm papel fundamental na formação da sociedade civil.

Ela receia que os financiadores públicos possam influenciar a independência da sociedade civil e introduz um caloroso debate na Grã-Bretanha perguntando-se se empresas sem fins lucrativos deveriam trabalhar com contratos de serviços públicos. Quando o empurrão vinga, restam poucas dúvidas de que os financiadores estão na direção certa. Como depois de tudo eles pagam pelo que fazem, a decisão deles é a que conta.

Ainda não se sabe se a verdadeira questão é a tendência atual de financiamento (que não é somente uma reserva da “nova” filantropia), desviando-se cada vez mais da tomada de decisão em direção aos financiadores do Norte e mais longe dos países em desenvolvimento. Será que se as fundações já estabelecidas também estão adotando a retórica e as práticas na nova filantropia? Michael Edwards cita a Gates “supostas preocupações de virar uma Fundação Ford”, mas parece que o enfoque deles tem-se aproximado.

Em direção a uma filantropia mais estratégica
Está claro que a tendência em direção a uma filantropia mais estratégica tem estado em ascensão já por algum tempo. Esta tem sido orientada em parte pelo pensamento das fundações a respeito do impacto do seu trabalho, direcionando-se para um foco mais amplo, objetivos mais claros e programas que dependem de menor número de grandes doações.

Programas reativos às doações são cada vez em menor número apesar de notáveis exceções como a Fundação Esmee Fairbairn, uma das maiores fundações da GB, que mudou para doações reativas mais abertas a partir de Janeiro de 2008. Algumas fundações têm chegado a ser mais como “fundações operacionais” seguindo o modelo alemão onde não há doações: somente contratos.

Filantrocapitalismo é uma forma extrema de estratégia filantrópica. Esta “nova” filantropia, como descrita por Michael Edwards, tem três características principais. Primeiro, implica no gasto de largas quantidades de dinheiro derivados na sua maioria de lucros obtidos no setor financeiro e de TI nas últimas duas décadas. Segundo, se baseia na crença de que os métodos empresariais podem resolver problemas sociais uma vez que são reconhecidos por serem superiores aos outros métodos utilizados no setor público ou na sociedade civil. Terceiro, alega que estes métodos podem alcançar não só transformações sociais como também aumento à acessibilidade aos benefícios sociais e aos serviços. Edwards desafia estes dois últimos em “Simplesmente um Imperador a Mais”.

Filantrocapitalismo e Controle do Doador
Enquanto os críticos do filantrocapitalismo têm a tendência de centralizar suas queixas na inadequação para fomentar mudanças sociais de longo prazo ou justiça social, uma das conseqüências despercebidas do filantrocapitalismo é o receptor do dinheiro passar a ser um mero agente do doador e sua perspectiva no mundo pouco acrescenta: um perigo reforçado no artigo da página 36, com o relevante título: “Subempreitada ou Visionários?”.

No entanto, o tema de quem controla o que é vital na sociedade é importante porque as pessoas que estão oprimidas ou marginalizadas desejam estar no controle do seu próprio destino ao invés de serem tratadas como objetos de caridade ou peão de um grande jogo de xadrez da solução dos problemas mundiais.

Qual é a compatibilidade do controle local com o foco orientado a objetivos da filantropia “estratégica” que está virando progressivamente a norma? Não muito, de acordo com Tade Aina, Representante da Fundação Ford do Leste da África, como manifestou na reunião de Maio em Nairobi, onde ela descreveu algumas das características do que ela chama de “nova arquitetura da assistência”.

As doações tendem a chegar somente para as maiores, mais formais, melhor estruturadas instituições possuidoras de estruturas aceitáveis para o consórcio doador, embora os fundos estejam relacionados a programas ou projetos. “Eles não dão apoio a investimentos em fundações ou em propriedades de instituições locais”. Isto também significa “menos apoio flexível para assuntos definidos e adotados de forma autônoma pelas instituições locais” e eles “terão que se encaixar no planejamento nacional de desenvolvimento ou na estreita visão dos grandes doadores privados”.

Ele fala sobre o “consenso emergente de procedimentos e metodologias que predomina nas empresas e negócios liderados pelos filantrocapitalistas, onde também se agregam antigas filantropias como a Fundação Rockefeller e sua insistência em manter uma visão estreita, de alto impacto, com resultados claros e mensuráveis”.

A Depilação e a Palidez do Controle do Doador
De Bretton Woods ao desenvolvimento comunitário

Estes temas estão longe de serem novidade. Com o filantrocapitalismo existe um sentimento de que estamos voltando 60 anos para criar o atestado de Evan Durbin de 1949 que disse: “agora todos somos planejadores”. Esse enfoque ganhou expressão na conferência de Bretton Woods de 1944, que planejou o mundo do pós-guerra demonstrando uma imensa confiança de que o mundo poderia ser regido pela combinação de boa vontade, cooperação internacional e novas instituições financeiras.

Este etos de planejamento, derivado originalmente do socialismo de Fabian, de Beatrice e Sidney Webb, espalhou-se rapidamente pelo mundo não somente na Europa como também em grande parte da África e da nova Índia independente.

Nos idos de 1955, esse enfoque de cima para baixo foi questionado pelo Movimento da Comunidade de Desenvolvimento do Terceiro Mundo. Era inspirado pela “teoria populista” cuja virtude baseia-se no fato de que as pessoas simples, maioria absoluta nas tradições coletivas, são as que melhor sabem o que desejam e precisam. Essa perspectiva levou a uma série de diversos enfoques, onde o denominador comum entendia que as pessoas comuns eram tratadas indevidamente.

Apesar de que da teoria populista dever muito às perspectivas de auto-organização derivadas das idéias anarquistas do século XIX (com as idéias de Peter Kropotkin e com as dos ativistas políticos como Mahatma Gandhi), muitos dos proponentes do enfoque participatório eram missionários e colonizadores.

Na verdade, o Escritório Colonial Britânico do Comitê de Aconselhamento em 1944, elaborou um relatório de Educação Massiva Nativa nas Colônias, onde promovia o controle local como meio de oferecer serviços na agricultura, saúde e serviços sociais. Em 1950, a idéia de desenvolvimento comunitário foi destaque nos textos das Nações Unidas e, ao final da década, desenvolveu-se uma teoria bem articulada. (2)

O desenvolvimento Comunitário alcança sua apoteose durante a Guerra e também à custa da pobreza na América de 1960. O motivo principal no enfoque definido no Ato da Oportunidade Econômica era a “participação máxima possível”. A teoria consistia em que a participação dos mais pobres criaria oportunidades que reduziriam a pobreza que, por conseguinte, levaria à Grande Sociedade. No entanto, como veremos adiante, tudo terminou muito mal.

Do crescimento até a revolução associativa
Nos anos de 1970, declinou a participação como estratégia interventora. Em alguns países as expectativas eram grandes demais, originando muita decepção até nos ativamente envolvidos. Em outros países, corrupção, má administração, e ineficiência significaram que os recursos designados para fomentar a participação das pessoas comuns nunca chegaram a elas.

Como conseqüência, a participação foi substituída pela ênfase em crescimento, transferência de capital, modernização da indústria pesada e da economia. Na África, muitos governos continuaram utilizando a retórica da participação, mas fracassaram em fornecer recursos para que isto se tornasse realidade. Em 1978, na Índia, o governo abandonou seu programa de desenvolvimento comunitário.

Dez anos depois, pudemos observar a abertura da América do Sul, África do Sul e Europa Central e do Leste e, mais uma vez, o foco mudou totalmente. A “sociedade civil” teve uma vitória clara nas revoluções de 1989 e no desmonte do apartheid na África do Sul. O poder popular era visto como parte chave nas mudanças e a idéia fora lapidada formalmente pela “Revolução Associativa” de Lester Salamon.

Ele disse que o crescimento das empresas sem fins lucrativos no final do século XX poderia ser comparável e politicamente significante com o crescimento do estado-nação do final do século XIX. As fundações, empresas sem fins lucrativos, universidades e departamentos governamentais, mudaram abruptamente a linguagem nos seus programas de empresas sem fins lucrativos para prosseguir com esta nova ideologia secular de dar apoio às pessoas em suas próprias instituições.

O surgimento da “nova” filantropia
Na virada do milênio, este novo otimismo começou a desaparecer. Não estava claro o que a sociedade civil oferecia e, um número significativo de financiadores, deu marcha a ré. Uma delas foi a Atlantic Philanthropies, que depois de ter decidido gastar sua doação num período de 12 a 15 anos, resolveu centralizar suas doações em apenas quatro bem definidos e “estratégicos” programas onde poderia sentir que haveria impacto máximo e conseguiria uma “herança” visível.

Uma série de livros e artigos chamou a atenção para a lerdeza da sociedade civil e a dificuldade em aparelhá-la para desenvolver uma estratégia de doações com o intuito de obter resultados mensuráveis.

Em 2001, a fundação Bertelsman deu início à Rede de Filantropia Estratégica. Apesar do programa não ter tido durabilidade, a idéia de que os doadores deveriam ser estratégicos e não reativos, ganhou adeptos. O surgimento da “nova” filantropia com suas características concomitantes de planejamento de cima para baixo, fecharam o círculo iniciado com Durbin.

Moda em Filantropia
Então, aí está o papel da moda na filantropia. Como disse Ian Smillie, fazendo eco à letra de Joni Mitchell em “The Circle Game”, “Os pôneis pintados... giram e giram”. [3]. No âmbito da filantropia, o papel dos shows de moda aparece claramente no seu idioma. Novos termos são constantemente inventados.

Dificilmente naqueles dias alguém dominaria o enfoque “de cima para baixo” que parece ser evidentemente indesejável porque hoje em dia, predomina o de “baixo para cima” que soa melhor. Substitua “para cima” por “reativo” e “para baixo” por “pró-ativo” que a forma das coisas muda. “Reativo” soa ineficiente e antiempreendedor; enquanto “pró-ativo”, soa mais positivo.

Da mesma forma pensem em “nova” filantropia com sua persuasiva conotação de eficácia empreendedora, orientada para impactar, orientada para resultados e enfoques estratégicos. Quem gostaria de associar-se à filantropia “velha” ou “tradicional”? Parece que cada vez menos pessoas: nem a filantropia “velha” nem a “tradicional”. “Nova” é uma maneira esperta de colocar uma nova embalagem no velho e interminável debate.

A moda se repete porque, assim como o comprimento das bainhas ou o tamanho dos saltos, só existem limitadas variações: se os saltos são muito altos, você cai. Ao longo de 60 anos nós temos estado num ciclo que balança da exortação do Chairman Mao, “Que centenas de flores floresçam” à forma mais corporativista do dirigisme Francês. Uma geração anterior falava de “planejamento” versus “laissez-faire”.

É a linguagem nova desenhada meramente para maquiar o fato de que velhos e intratáveis problemas ainda não foram resolvidos? Ou é o caso de velhas e conhecidas atitudes que emergem com uma nova roupagem? Um fato positivo disto é que adotando novos termos dar-se-á vida e energia renovadas ao debate que ainda está por vir. O quadro da velha filantropia/nova filantropia pode ser compreendido sob este prisma.

Nada de bala mágica
Qualquer um que esteja tentado a pensar que existe só uma resposta correta para o balanço do poder entre o doador e o beneficiado, deveria ler o clássico dilema de Marris e Reins, “Dilemmas of Social Reform”. (4) Se houve um momento na história em que os doadores realmente tentaram acertar isto, foi durante a “Guerra à Pobreza” na América dos anos 60.

Aqui, os recursos de cima para baixo, combinados com análise racional e avaliação científica, levaram a desenvolver programas de cima para baixo, porém o planejamento permitiu às pessoas do lugar opinar sobre como os programas deveriam ser implementados no local. Por exemplo, tanto o Programa de Ação Comunitária como o Programa Cidade Modelo tinham como objetivo dar autonomia aos mais pobres da sociedade americana e permitir transformações de baixo para cima.

No entanto, tudo deu errado. Muitas comunidades afro-americanas não gostaram do programa porque sentiam que o slogan “participação máxima possível” era simbólico e condescendente, permitindo aos doadores fugirem de temas reais como a desvantagem estrutural e discriminação. A Prefeitura não gostava dos programas porque sentia que estes permitiam que as organizações comunitárias usurpassem seus poderes de direito.

Os trabalhadores profissionais não gostavam deles porque achavam que o programa “Nova Carreira Para o Pobre” ameaçava seus empregos. Sem o acordo básico definido claramente sobre que programa é para quem e quem se beneficiará com ele, certamente se desmancharia da mesma forma como aconteceu com a Guerra Contra a Pobreza dos EUA.

Qualquer um tentado a realizar mudanças, seja de cima para baixo ou de baixo para cima, tem que lidar com as realidades da vida no chão. Por isso que nenhuma fórmula ou bala mágica funcionará. Ambos, o doador e o beneficiado têm que confrontar os direitos adquiridos, as formas de trabalho estabelecidas, os processos institucionais, as influências da agência, as atitudes arraigadas e as normas para determinar o passado e o futuro da ajuda oficial para o desenvolvimento.

A combinação de enfoques
A dependência somente numa forma de intervenção - seja esta um modelo derivado de empresas ou um modelo derivado de teorias de desenvolvimento comunitário - é insuficiente para quase a totalidade das circunstâncias sociais onde os doadores desejam fazer a diferença. É preciso combinar os enfoques e o ponto central é que qualquer intervenção precisa ser política e socialmente sensível às condições locais. É axiomático que essas condições locais avaliem que nunca haverá somente uma fórmula mágica. No entanto, isto não significa que nós não podemos aprender sobre o que funciona e o que não funciona.

Nesta edição da Alliance, nós estipulamos alguns enfoques promissores pelos quais as organizações do Sul começam a encontrar formas de montar sua própria agenda e negociar em termos iguais com os doadores do Norte.

Sheila Richards, Oscar Rojas e Santosh Samal (clique aqui) descrevem como as fundações do Sul, trabalhando em sociedades divididas, podem agir como uma ponte útil ente o Norte e o Sul. Estes “doadores ativistas” fazem parte das comunidades marginalizadas que os doadores do Norte podem estar tentando alcançar já que ao investir neles se muda a carga da tomada de decisão do Norte para o Sul.

A TrustÁfrica, de acordo com Bhekinkosi Moyo (clique aqui), já começou a equacionar o campo entre Norte e Sul ao intervir na definição das agendas de reunião que dão à TrustÁfrica a legitimidade de juntar-se com os doadores do Norte em termos igualitários e o Fundo do Desenvolvimento de Mulheres Africanas está fazendo uma aproximação semelhante, montando uma agenda filantrópica feminista através dos seus beneficiários.

[1]. Julia Unwin (2005) O Tango das Doações. The Barning Foundation, Londres. www.barigfoundation.org.uk/GrantmakingTango.pdf.
[2] P. Kuenstler (1960) “New Community Organization”. Farber and Farber, Londres.
[3] I Smillie (1995) “The Alms Bazaar: Altruism Under Fire – Non-Profit organizations and international development”. Intermidiate Technology Publications, Londres.
[4]. P Marris and M Rein (1972) “Dilemmas of Social Reform”. Penguin Books, 2ª. Edição.


Barry Knight e Caroline Hartnell
Barry Knight é Secretário da CENTRIS. E-mail: barryknight@cranehouse.eu
Caroline Hartnell é Editora da Alliance. E-mail: caroline@alliancemagazine.org
Boletim Alliance Brasil, Ano 3 – Edição 12 – 28/10/08

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Abandonar o tradicional é caminho para a sobrevivência

Conforme declarou Ricardo Guimarães, da Thymus, durante a 10ª Futurecom, as antigas promessas publicitárias da perfeição devem ser rapidamente abandonadas pelas marcas

Enquanto muito se discutia sobre as novas tecnologias e a era da multiconexão, Ricardo Guimarães, presidente da Thymus Consultoria de Identidade de Marca, dava uma receita simples às empresas que desejam sair vivas da recém-instaurada crise econômica mundial. O segredo: compartilhar informações e ouvir os consumidores.

Em painel patrocinado pela operadora Vivo durante a 10ª Futurecom, o consultor afirmou que antes de mais nada é preciso que as empresas abandonem a visão de ficção científica preocupadas tão somente com o fechamento do ano fiscal para ficarem mais atentas à realidade e à praticidade desejada pela sociedade consumidora. "Irão sobreviver aquelas que tiverem flexibilidade, agilidade e poder de adaptação", disse Guimarães.

Segundo ele, as promessas publicitárias da perfeição nos moldes do passado recente - ainda presente - devem ser rapidamente abandonadas pelas marcas porque se tratam de ciladas em um cenário onde a informação se propaga e o boca a boca ganha forças inimagináveis. "Isso não funciona mais. Para os consumidores de hoje, as empresas devem se mostrar transparentes e deixarem claro que estão no mercado também para errar e aprender. Ignorar a nova realidade com tanta tecnologia é um tiro no pé", completou.

Do painel participaram ainda Caio Blinder, Lucas Mendes e Ricardo Amorin - apresentadores do programa Manhattam Connection -, além do jornalista Marcelo Tas.


Mariana Ditolvo
Meio & Mensagem Online, 28/10/08

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Criança ainda não é prioridade

A absoluta prioridade na proteção integral dos direitos da população infanto-juvenil ainda é uma falácia no Brasil. A opinião tem como base os dois dias de atividades promovidas em um congresso sobre o tema, realizado pela Fundação Abrinq, nos dias 23 e 24 de outubro, e que reuniu cerca de 800 representantes da sociedade civil, poder público e setor privado.

Disposta na Constituição Federal Brasileira, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e em uma série de convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, a prioridade na defesa do público é “letra morta” sob o prisma das políticas públicas em favor da infância.

“Basta ver a crise no mercado, o fiasco do neoliberalismo. Enquanto esses agiotas recebem ajuda, o governo é incapaz de extinguir da DRU (Desvinculação das Receitas da União, que permite ao governo usar 20% de sua receita como bem entender), que poderia dar R$ 2 bilhões à implantação do Plano Nacional de Educação, que já está pronto”, criticou o celebrado professor-doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Dalmo Dallari.

No entanto, essa não foi a única constatação lançada durante o congresso. Dividido na análise de três grandes direitos - à Educação, à Saúde e à Proteção Integral e Especial – o programa incitou os participantes a analisarem suas próprias práticas. “O evento é um estímulo à inquietude de não fazer mais do mesmo”, analisou o presidente da Fundação Abrinq, Synésio Batista da Costa.

Temas
Durante os dias de evento, os convidados foram divididos em grupos temáticos, nos quais realizaram um balanço e perspectivas das ações intersetoriais voltadas à criança e ao adolescente. Nelas, foram feitos diagnósticos de urgências para a construção de políticas mais claras para o segmento.

Em uma das mesas, por exemplo, ao discutir sobre direito à educação para a primeira infância (0 a 6 anos), ficou claro entre os palestrantes a crença de que muitos dos problemas educacionais brasileiros residem na falta de vagas em creches. Segundo o Plano Nacional de Educação, de uma população de 13,8 milhões de crianças de 0 a 3 anos, apenas 17% têm acesso a algum tipo de atendimento educacional.

”A primeira infância é decisiva no processo de desenvolvimento dos indivíduos. Daí a importância da educação infantil para as crianças de 0 a 6”, afirma o especialista em educação infantil, Vital Didonet.

Em outro painel, este sobre Desenvolvimento Social e Combate ao Trabalho Infantil, analisou-se a importância da Educação no combate às piores formas de trabalho e à exploração de mão-de-obra. A pesquisadora e colaboradora do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas, Jacqueline Brigadão, levantou três pontos principais em sua apresentação.

O primeiro é que a Educação deve ser vista de forma ampliada, incorporando preocupações da assistência social. “Entender o ensino como estratégia de superação da pobreza, como cidadania”, argumentou.

Em seguida, mostrou como a legislação ainda pode ser considerada pouco esclarecedora no que diz respeito à defesa dos direitos. “O ECA apenas nos dá negativas, em que a criança não pode, não deve... mas não há qualquer indicação sobre o que deve ser feito, de onde virá o dinheiro. Outro exemplo é a área assistência social que sequer tem orçamento próprio, seja em âmbito federal, estadual ou municipal”, afirmou.

No fim, mostrou-se preocupada com o que chamou de hipocrisia, na qual a pobreza explica o trabalho infantil. “Isso é um absurdo. O meu filho tem o direito a ir à escola e o dos outros têm que ajudar a família”, ironizou.

Segundo dados trazidos pela secretária executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, Isa Maria de Oliveria, cerca de 4,8 milhões de crianças e adolescentes (5 a 17 anos) trabalham. Entre 7 a 14 anos, 660 mil estão fora da escola. Destes, 25% têm responsáveis com menos de um ano de escolaridade e renda de ¼ de salário mínimo.

“Mesmo com esses dados, o governo federal não expandiu o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (que atende 877 mil crianças e adolescentes), como o prometido, apenas incluindo-o no Bolsa-Família”, recordou Isa.

Outra crítica contundente foi realizada pela psicopedagoga, Isa Maria Guará. Segundo ela, há pouco diálogo entre pastas governamentais ao se realizar políticas públicas para crianças, adolescentes e jovens, tornando-as descoladas em vez de complementares. “Essa movimentação para deixar as políticas mais orgânicas vêm de baixo, dos movimentos sociais”, disse.

Pesquisa
Durante o Congresso, a Fundação Abrinq lançou um relatório inédito sobre a evolução das políticas públicas municipais voltadas a essa faixa da população: Tendências da Garantia de Direitos das Crianças e Adolescentes no Brasil.

O documento traz a conjuntura do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e Adolescente no Brasil, traduzindo os principais indicadores sobre três eixos das políticas públicas para infância e adolescência (que pautaram o evento): Educação, Saúde e Proteção Especial. Revela ainda qual parte do orçamento é destinada a Crianças e Adolescentes.

A análise indica a tendência dos municípios brasileiros na implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), revelando o quanto as políticas públicas ainda precisam avançar para efetivar a garantia dos direitos desse segmento populacional, principalmente no que se refere ao orçamento. Por exemplo, há municípios que investem a irrisória quantia de R$ 75 por criança/ano na assistência social.

Outra conclusão apresentada é falta de estrutura dos municípios na implementação do sistema único da assistência social (SUAS), bem como a necessidade de investirem na formação dos professores para a melhoria na qualidade do ensino.

No que se refere ao comprometimento da sociedade civil na participação da elaboração das políticas públicas voltadas para a criança e o adolescente, apesar dos avanços, o estudo aponta para a necessidade de maior envolvimento e controle social.

Esse estudo é resultado da avaliação de 535 municípios que participaram do Programa Prefeito Amigo da Criança nessa gestão, de 2005 a 2008.

Desenvolvido pela Fundação Abrinq, o programa tem como objetivo comprometer os prefeitos na implementação de ações e políticas que resultem em avanços nos direitos das crianças e adolescentes, fortalecendo os mecanismos preconizados pelo ECA.

Conclusões
Embora as conclusões do evento apontem para um olhar mais cuidadoso sobre indicadores e avaliação, co-responsabilidade (maior envolvimento da sociedade), qualificação do conhecimento da legislação, transversalidade do território e a criação de redes de apoio aos direitos das crianças e adolescentes, o evento deixa duas lições incontestáveis.

A primeira é a de que, como disse o presidente do Conselho Consultivo da Fundação Abrinq, “não há dúvida sobre o que fazer”. A segunda é que falta é posicionamento do Estado, sua conseqüente falta de orçamento, isso leva a uma falta de clareza sobre quem são os responsáveis.

Sobre falta de posicionamento político, não deixou de ser curiosa a participação do ministro Paulo Vannuchi, Secretário Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, no evento. Convidado para dar a palestra na abertura do evento, o ministro parece não ter seguido o protocolo e não tocou nos temais mais candentes em sua apresentação. Segundo nota emitida durante o congresso no site da Fundação Abrinq “a falta de informações a respeito da situação da infância e adolescência no país por parte do ministro deixou a platéia indignada”.

“As questões que os representantes da sociedade civil queriam que o ministro respondesse ficaram no ar: por exemplo, quanto o governo Lula já investiu para a implementação de políticas em favor das crianças e adolescentes e, principalmente, qual é o seu plano de ação e quanto pretende investir neste setor até o final do seu mandato em 2010?”, questiona o texto.

A nota ainda comenta que, cobrado sobre os compromissos assumidos pelo governo brasileiro com o Projeto Presidente Amigo da Criança, da Fundação Abrinq, de efetivar políticas públicas garantidoras de direitos e de prestar contas à sociedade, por meio da apresentação de um plano de ação para gestão 2007-2010, o ministro argumentou que o prazo dado "foi exíguo".

“Para ele houve muitos avanços nestes 18 anos de promulgação do ECA. Mas o que fazer daqui pra frente? Era isso que a gente queria que o ministro falasse. Não podemos nos contentar com indicadores que não, necessariamente, mostram a realidade”, diz a nota.

Ao final do Congresso, o presidente da Fundação Abrinq, Synésio Batista da Costa, fez uma provocação a todos os presentes. Ao agradecer os resultados dos debates e palestras realizados durante o evento, o presidente deixou claro que ainda há muito a ser feito “Agora, vamos embora, mas não esqueçam que, daqui a pouco, 4 milhões de crianças que estavam trabalhando tentarão dormir”.

A fundação sistematizará o conteúdo discutido nas salas e propõe publicar os resultados nos próximos meses em seu site: www.fundabrinq.org.br


Rodrigo Zavala
redeGIFE Online, 27/10/08

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Edital tem até R$ 10,8 milhões para incubadoras de empresas

Chamada pública lançada por Sebrae e Anprotec amplia atendimento às micro e pequenas empresas por meio do apoio às incubadoras de empresas; propostas devem ser apresentadas até 14 de novembro
Foto Ricardo Lima


Apoiar incubadoras do País para que elas prestem serviço de atendimento empresarial às micro e pequenas empresas que estejam fora do ambiente de incubação. Esse é o objetivo do edital lançado pelo Sebrae Nacional neste mês. A ação faz parte de parceria da Instituição com a Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec).

A chamada 08/2008 prevê recursos de até R$ 10,8 milhões, oriundos do orçamento da Unidade de Acesso à Inovação e Tecnologia do Sebrae Nacional. Serão apoiadas até 60 propostas, sendo no mínimo 50% dos projetos destinados a incubadoras das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Para participar, as incubadoras devem atender aos requisitos da chamada pública, que pode ser encontrada no site do Sebrae (www.sebrae.com.br). As entidades devem ser associadas à Anprotec e precisam ter, no mínimo, quatro anos de operação, além de ter ao menos cinco empresas incubadas. Outra exigência é que a incubadora tenha graduado empresas.

As propostas devem ser apresentadas até o dia 14 de novembro. Uma via da proposta deve estar em CD. A outra, impressa, deve estar devidamente rubricada e assinada pela entidade proponente. As propostas terão prazo de execução de seis meses, contados a partir da assinatura do convênio com as unidades do Sebrae nos estados. Há possibilidade de prorrogar a execução por mais 12 meses, mas isso está condicionado ao desempenho e resultados obtidos na primeira fase do projeto.

O processo de seleção está dividido em duas etapas. Primeiro, os participantes passam por um processo de qualificação por meio das propostas apresentadas. Nessa etapa, há avaliação da infra-estrutura da incubadora e atendimento aos requisitos mínimos necessários para a implantação e operacionalização das propostas.

A partir do dia 1º de dezembro, as incubadoras aprovadas na primeira etapa serão notificadas e chamadas a participar da segunda etapa, que é composta de uma capacitação. Essa fase vai ocorrer no início de janeiro de 2009. Após a capacitação, as empresas deverão apresentar um plano de trabalho de atendimento.

O gerente da Unidade de Acesso à Inovação e Tecnologia do Sebrae Nacional, Paulo Alvim, explica que esse edital está inserido na estratégia de revolução do atendimento da Instituição. "Esse é o segundo edital de ampliação do atendimento das incubadoras. Estamos aumentando o conjunto de empresas beneficiárias. Com essa ação, as incubadoras, além de abrigarem empresas, prestarão serviço de informação, capacitação e consultoria para as micro e pequenas empresas", diz.

O edital do ano passado previa um aporte de até R$ 5,4 milhões. Ao todo, 14 incubadoras de oito estados do País (PA, CE, PB, MG, RJ, AM, PE e DF) foram capacitadas para prestar o atendimento às micro e pequenas empresas. Elas já tiveram o plano de trabalho aprovado, celebraram convênio com o Sebrae nos estados e estão em fase de execução do atendimento.


Chamada 08/2008 – Prazo para entrega de propostas: 14 de novembro
http://www.sebrae.com.br/customizado/sebrae/institucional/chamadas-de-projetos/inovacao-e-tecnologia


Giovana Perfeito
Agência Sebrae de Notícias, 28/10/08

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Cultura, recurso para o desenvolvimento

Um dos fenômenos mais alarmantes desse início de século são os números da progressiva favelização e desemprego, muitas vezes também chamada de “humanidade excedente”, especialmente em países em desenvolvimento. Segundo Mike Davis, no livro The planet of slums, um estudo bastante impressionante, a população favelada, aferida pelo UN-Habitat report, cresce hoje em torno de 25.000.000 de pessoas por ano. Este mesmo relatório avalia que os novos pobres periurbanos e suas comunidades informais ou favelas, em 2020, chegará de 45% a 50% do total dos moradores da cidade.

No Brasil, os números deste Big Bang da pobreza urbana não são menos dramáticos. A população que vive em favelas ou “aglomerados subnormais” cresceu 45% nos últimos anos, três vezes mais que a média do crescimento demográfico do País. Hoje, temos 51,7 milhões de favelados, resultado de uma trágica equação de mercado, tornando o Brasil a terceira maior população favelada do mundo, atrás apenas de Índia e China.

Nesse quadro de aumento aparentemente irreversível das desigualdades sociais e econômicas e de altos índices de miséria, sobressaem-se, de forma surpreendente, os possíveis usos da cultura enquanto fator de desenvolvimento nas favelas e comunidades de baixa renda no Brasil.

Neste sentido, podemos pensar no conceito de “cultura como recurso”, noção batizada por George Yudice, professor da Universidade de Nova York. Essa noção expressa de forma contundente o contexto da globalização, na qual pode-se observar uma inédita expansão da cultura para os campos da política e da economia e, simultaneamente, o esvaziamento das noções tradicionais e elitizantes de cultura.

Hoje, a cultura é um valor a ser preservado em sua diversidade e pluralismo – assim como a biodiversidade – e o investimento em cultura é visto como prioritário para o fortalecimento da fibra social e, conseqüentemente, para o desenvolvimento político e econômico. Em seus vários e diversificados usos, tanto como economia emergente no mercado global quanto como forma de negociação ou resistência, a cultura tornou-se efetivamente um recurso para a melhoria sociopolítica, para a formação de quadros e geração de renda, para o gerenciamento de conflitos e para a construção da experiência cidadã. Na mesma pista, Jeremy Rifkin cria a noção de capitalismo cultural que teria sucedido e mesmo eclipsado o capitalismo industrial, referindo-se a uma idéia de cultura em tempos de dominância dos fluxos informacionais e comunicacionais permitido pelos meios digitais. A antiga luta de classes perde o sentido diante da luta pelo direito ao acesso à informação e à cultura.

Vou trazer aqui um exemplo prático para exemplificar um dos mais eficazes modelos de uso da cultura como recurso para promover geração de renda e inclusão social. Falo do caso do Grupo Cultural AfroReagge, da Favela do Vidigal, Rio de Janeiro.

O AfroReggae é uma ONG criada a partir do impacto na imprensa e na sociedade civil, gerado por um confronto sangrento entre os chefes do narcotráfico e a polícia, que terminou com um terrível massacre de 21 inocentes, no dia seguinte ao embate, percebido por todos como uma vingança da polícia. Os moradores inauguraram, e desenvolvem desde então, uma estratégia singular cuja meta é retirar os jovens do trabalho com o narcotráfico através do estímulo à produção cultural nessa comunidade.

Este uso estratégico da cultura, hoje fartamente utilizado nas favelas brasileiras, inicialmente para enfrentar o império do narcotráfico nessas regiões, desenvolve-se e amplia-se no sentido dos usos da cultura como fatores de geração de renda, de alternativa ao desemprego progressivo nessas comunidades, de estímulo ao aumento da auto-estima, de afirmação da cidadania, e, conseqüentemente, de demanda por direitos políticos, sociais e culturais. O caso AfroReagge é exemplar nesse sentido.

Nesses 15 anos de atividades, conseguiu beneficiar mais de sete mil jovens através de 72 projetos políticos e socioculturais no Brasil e no exterior; 13 subgrupos artísticos; cinco ONGs apoiadas no Brasil e uma no exterior (Colômbia). Sua ação vem sendo expandida por meio da coordenação de mais quatro outros núcleos de cultura em outras favelas do Rio de Janeiro, disseminando sua metodologia e a missão de promover a inclusão e a justiça social, utilizando a arte e a educação como ferramentas.

Além disso, o AfroReggae, com o apoio da UNESCO, exporta suas tecnologias sociais e expertise em gestão de conflito, usadas inicialmente no controle dos embates de facções de traficantes rivais, para casos de conflito na Índia, Londres e Colômbia.

A forma de ação distintiva desses novos projetos culturais é a de uma atitude “pró-ativa” a partir e para a comunidade, que surge agora com maior eficácia no lugar das velhas políticas de reação, oposição e denúncia de abandono do Estado. Essa atitude privilegia a ação pedagógica, em lugar do confronto agressivo, com excelentes resultados para as comunidades pobres. De uma forma mais geral, o que é reivindicado é o acesso à cultura, visto como um direito básico de todo cidadão, identificado como uma das grandes carências dessas comunidades e como fator estratégico para qualquer projeto de transformação social.

Algumas prioridades são estabelecidas nessas ações culturais. Uma delas é a conquista de visibilidade para as comunidades por meio da divulgação intensiva da informação sobre a condição de vida nas favelas, os desejos e as demandas dos habitantes destas comunidades. O rap é a mídia mais agressiva no sentido da conquista da visibilidade, ganhando aqui um status de luta. Além do rap toda a cultura produzida na favela parece ter esse compromisso com a potencialização das ações de disseminação da informação.

Outro objetivo importante do investimento político feito na cultura por esses atores é a formação de quadros na área da cultura e do desenvolvimento da capacidade de se situar no mercado de trabalho, desenvolvendo uma pedagogia de formação do empreendedor engajado. Engajado porque cria um compromisso de redistribuição dos saberes adquiridos e atua na formação de novos quadros nas comunidades de origem.

Examinando o quadro político-cultural das favelas brasileiras fica clara a importância da multifuncionalidade das práticas culturais no mundo de hoje.

Se durante dois séculos assistimos o triunfo da economia sobre a política, hoje as questões culturais, aquecidas pelos crescentes conflitos sociais e pelo impacto das possibilidades de produção e articulação proporcionadas pelas novas tecnologias digitais, começam a se impor como eixo político por excelência das formas emergentes de práticas políticas. É neste sentido que os direitos culturais vêm sendo uma demanda nova e significativa no panorama político e econômico global.


Heloísa Buarque de Hollanda
Professora de Teoria Crítica da Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, do Fórum de Ciência e Cultura e do Instituto Projetos e Pesquisa, ambos da UFRJ. Também dirige a Aeroplano Editora Consultoria Ltda.
Boletim da Democratização Cultural - Edição 43, 24/10/08

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Crises mundiais reforçam papel central da agricultura familiar

Crises mundiais reforçam papel central da agricultura familiar

A demanda pela produção de gêneros alimentícios e o furacão que chacoalha o mercado financeiro - ligado diretamente ao comércio mundial das commodities - reforçam a relevância da produção familiar para o futuro do país.

Primeiro foi a crise dos alimentos, que elevou os preços de gêneros básicos nas prateleiras mundo afora. Depois veio a crise financeira, que abalou o "coração" do capitalismo globalizado e continua atormentando a tábua das marés do chamado "mercado". Seja pela demanda de aumento da produção familiar ou pela demonstração cabal dos riscos da dependência das commodities agrícolas à roleta especulativa bancária, a conjuntura deste ano contribuiu para reposicionar a agricultura familiar como setor essencial ao equilíbrio nacional, tanto em termos econômicos quanto sociais.

Em entrevista à Repórter Brasil, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, vê "uma re-significação da agricultura familiar para o país" no período recente. "A agricultura familiar tinha passado a ser vista pela sociedade como espaço de atraso, de problemas, de pobreza. Conseguimos resgatar o significado e conseguimos resgatar o setor economicamente, um setor que é muito relevante para o país", coloca o ministro. Para ele, "a visão que estava se estabelecendo era uma visão errada".

Um dos nós do amplo debate gerado a partir da crise dos alimentos se concentra no uso de terras e da força produtiva para as culturas ligadas aos agrocombustíveis, em concorrência com a produção de alimentos. Em alguns casos, estimativas chegaram a atribuir 75% da alta do preço dos alimentos aos agrocombustíveis. Em que pese os possíveis exageros nos números (e os interesses camuflados por trás deles), a inflação dos preços alimentícios tem ajudado a ampliar as discussões sobre o que é prioridade na economia rural. Além de reafirmar que toda febre - inclusive a dos agrocombustíveis - exige contrapesos e cuidados, a crise reafirmou a importância da agricultura familiar e da produção de alimentos.

De olho neste cenário, o governo federal pretende destinar à agricultura familiar cerca de R$ 13 bilhões na safra 2008/2009. Um aumento de R$ 1 bilhão frente ao período anterior. Os números são do próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que estima que a produção familiar é responsável por 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros.

A crise financeira, por sua vez, reaquece as críticas à desregulamentação da economia, ao frenesi das bolsas de valores, mercadorias e futuros, à especulação da economia virtual, no mais das vezes sem base na economia real. A transposição desta lógica financeira à agricultura, que favorece apenas o retorno financeiro das commodities (soja, milho, carne etc.), passou a ser alvo de pesadas críticas - assim como a atuação das empresas do agronegócio que controlam os preços desses produtos.

Nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, pequenos agricultores buscam alternativas frente ao atual cenário. Em viagem realizada com o objetivo de estudar os impactos econômicos, sociais e ambientais que os agrocombustíveis têm gerado no campo brasileiro, a Repórter Brasil se deparou com importantes experiências de agricultores familiares - confira a íntegra do estudo "O Brasil dos Agrocombustíveis - Palmáceas, Algodão, Milho e Pinhão-Manso - 2008" (em pdf).

Nos quase 5 mil quilômetros percorridos pela reportagem, foi possível aferir o conjunto das pressões e dificuldades enfrentadas pelos pequenos produtores. E, ao mesmo tempo, como encontram soluções válidas não somente para a realidade de cada um deles, mas para o conjunto do setor.

Alternativas
A Região Sul possui uma tradição histórica em termos de agricultura familiar. Aproveitando as novas oportunidades trazidas pelos agrocombustíveis e por outras culturas com força no campo brasileiro, os pequenos agricultores também se desdobram para superar os desafios colocados. Com isso, a necessidade de viabilização de alternativas exige prudência e criatividade. Essencialmente, buscam adotar uma lógica com base na diversificação de culturas, no respeito ao trabalhador, ao meio ambiente, entre outros aspectos.

No Paraná, por exemplo, pequenos agricultores familiares empreendem uma verdadeira batalha para manter vivas as espécies crioulas do grão. No município de Bituruna (PR), a trincheira está erguida no Assentamento Rondon III. No lote do assentado Anísio Francisco da Rosa, cinco famílias participaram de um longo processo para preservar as sementes crioulas. A área do seu Anísio é também pródiga na diversidade de culturas e no auto-consumo.

Com a liberação de diversas variedades transgênicas no Brasil, as sementes crioulas conseguiram na atual safra o reconhecimento do governo federal. Por meio de um certificado emitido pelo MDA, os produtores que trabalham com este tipo de sementes poderão ter acesso ao crédito e seguro oficiais.

Em Porto Barreiro (PR), a força motriz dos pequenos agricultores é a organização coletiva da produção e da comercialização. Com apostas variadas - que vão de itens de cesta básica à produção de biodiesel, passando pela implementação de agroflorestas - os agricultores criaram a Cooperativa Mista de Produção e Comercialização Camponesa do Paraná (CPC-PR). De acordo com Valter Israel da Silva, integrante da direção nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) no Paraná, a cooperativa se dedicará a cuidar em nível estadual dos produtos da marca "Do Campesinato", do MPA Nacional.

De acordo com o dirigente, o movimento tem buscado estudar e recuperar a lógica da produção camponesa, inclusive com o lançamento de livros a respeito. "O pequeno produtor estava entrando na lógica do agronegócio".

Na região de Palmeira das Missões (RS), Romário Rossetto, da direção nacional do MPA no Estado, frisa que, embora o pequeno produtor sempre tenha diversificado o plantio, "nos anos 90, muitos chegaram a plantar quase só na lógica da monocultura". Segundo ele, "conseguimos reverter isso somando a lógica da diversificação às da segurança e da soberania alimentar".

Valter, do Paraná, concorda com o colega do Rio Grande do Sul e estima que, atualmente, "cerca de 20% das famílias com quem dialogamos começaram a utilizar a lógica que defendemos". Antes, diz, "lutávamos pelo crédito, mas a liberação de recursos atuava contra nós, pois incentivava a inclusão do agricultor no sistema, no uso das sementes, adubos, tudo das transnacionais". De acordo com o dirigente paranaense, as propostas do MPA nunca foram tão bem aceitas entre os agricultores quanto agora. "O discurso, que sempre pareceu somente ideológico, se torna claramente econômico com a atual crise". O projeto do MPA no Paraná, explica Silva, busca respostas integradas às crises ambiental alimentar e energética.

Edgar Kramer, presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar em Chapecó e Região (Sintraf), mostra, contudo, que inúmeros problemas continuam rondando o setor. Segundo ele, a população rural de Chapecó (SC), um dos centros do agronegócio na região, vem caindo significativamente. "As pessoas perdem o emprego na agroindústria, diante das exigências de mão-de-obra mais qualificada. O jovem está indo para a cidade. As novas famílias também". Segundo ele, quem vai para o núcleos urbanos "muitas vezes acabam no crime, no desemprego, nas favelas".

O cenário atual para a agricultura familiar é de completa insegurança, analisa Edgar. Entre outros motivos, porque as parcerias entre os agricultores e as grandes empresas da região e - como a Aurora, Sadia, Perdigão e outras - "só beneficiam os grandes", ao passo que os pequenos "entram com toda estrutura física e de trabalho". Na região, de Chapecó e outras próximas, é comum que a entrada de cada propriedade seja "carimbada" por uma dessas empresas. São os chamados "integrados", produtores que já têm sua atividade e produção ligadas diretamente a uma das empresas. Mais do que o nome da propriedade ou do seu dono, as placas destacam os logos das indústrias. E criam uma sensação de que os donos são outros...

Os apontamentos destacados pelo dirigente da Sintraf não são isolados, e encontram eco na posição de importantes entidades. E a Região Sul do país, mesmo com sua história de força no setor da agricultura familiar, não escapa às dificuldades - conforme se pode constatar nos relatórios produzidos pela Repórter Brasil sobre a soja e a mamona, e sobre o dendê, algodão, milho, babaçu e pinhão-manso que demonstram a existência na região de problemas de grilagem, de violência, problemas ambientais entre outros conflitos.

Leia o relatório "O Brasil dos Agrocombustíveis - Palmáceas, Algodão, Milho e Pinhão-Manso - 2008 (na íntegra, em pdf)", segundo de uma série de documentos sobre o tema em http://www.reporterbrasil.org.br/documentos/o_brasil_dos_agrocombustiveis_v2.pdf

Acesse em http://www.reporterbrasil.org.br/agrocombustiveis/o site do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis


Antônio Biondi, do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis
Envolverde, 28/10/08
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