sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Terceiro Setor: ‘Para-mercantil’ ou ‘Neo-governamental’?

Augusto de Franco
Carta Rede Social* 143, publicada em 02/08/07

A força da sociedade civil que temos está justamente no fato dela não poder ser organizada pelas organizações da sociedade civil que temos.

Tenho afirmado, nestas cartas e em outros textos e entrevistas, que o chamado terceiro setor está hoje diante de um desafio: ou consegue superar a sua forma de organização predominante (a nova burocracia associacionista que constituiu) ou não vai mais poder cumprir um papel inovador.

É forçoso reconhecer – como não me canso de repetir – que as organizações da sociedade civil, em sua imensa maioria, ainda se estruturam como mainframes e não como networks. Quando se denominam redes, quase sempre tal denominação é indevida porquanto aplicada a estruturas verticais de poder, com topologia descentralizada e não distribuída, com baixíssimo grau de rotatividade nas suas direções e com uma burocracia que, a despeito de ser reduzida pela falta de recursos, não deixa de ser formalmente semelhante a qualquer outra burocracia baseada na opacidade dos procedimentos, na discricionariedade das decisões e na verticalidade do fluxo comando-execução. Também é forçoso reconhecer que o paradigma organizativo que adotam essas organizações ainda é aquele, digamos, das fronteiras fechadas.

Existem exceções, é claro. Mas o fato é que aquela geração de ONGs que apareceu como grande novidade no último quarto de século, não poderá mais se manter na ponta da inovação social. Se não se reciclar, a 'nova burocracia associacionista das ONGs' poderá virar, em breve uma força francamente regressiva em termos da democratização da democracia e do desenvolvimento humano e social sustentável.

Não estou me referindo à sociedade civil e sim às chamadas organizações da sociedade civil. Não ver a diferença entre as duas coisas já é um sintoma do problema que estou enfocando nesta carta.

Em geral me perguntam: então o que podemos fazer – nós, que priorizamos a atuação na sociedade civil, no terceiro setor – para dar nossa contribuição à democracia e ao desenvolvimento? Minha resposta tem sido sempre a seguinte: articulem redes de pessoas ao invés de erigir estruturas burocráticas. Não façam igrejinhas. Não construam castelinhos. Não tentem privatizar o capital social do seu entorno ou do seu setor. Capital social é um bem público: quando privatizado, estraga. E pode dar origem a certas formas perversas de sociabilidade. Sobretudo não tentem jogar usando como cacife as relações alheias, negociando a partir da apropriação da vida social das comunidades, organizando, por exemplo, um "curral de pobres" para conseguir uma verba governamental, para atuar como terceirizados na implantação de uma política de assistência social (não estou delirando: existem centenas, talvez milhares de organizações fazendo isso neste momento). E, acrescento agora, evitem se comportar como organizações para-mercantis ou neo-governamentais. É a minha opinião e vou dizer por que.

Herdeira de uma herança político-cultural não convertida suficientemente à democracia, uma parte significativa das ONGs ainda se comporta como organizações fechadas, com programas proprietários, que não compartilham seus recursos e seus conhecimentos. Mais recentemente, compelidas por razões de sobrevivência, muitas dessas organizações resolveram entrar numa onda, vamos dizer assim, de “profissionalização”, tentando imitar os modelos de gestão mais eficientes das empresas. Penso que isso, ao invés de fortalecer, vai acabar enfraquecendo a sociedade civil. As organizações do terceiro setor não têm que imitar as empresas (e, muito menos, os governos) e sim afirmar a sua identidade própria de organizações da sociedade civil, presididas por uma “lógica” e uma racionalidade diferentes daquelas que regem o mercado (e daquelas que regem o Estado).

Isso não significa, é claro, não aproveitar o conhecimento acumulado pela iniciativa privada em tudo o que diz respeito à estratégia, à gestão organizacional, à gestão de pessoas e de stakeholders e, mais recentemente, à sustentabilidade (esta última, aliás, uma área em que só agora as empresas começam a engatinhar). Mas significa que as tentativas de aproveitar esses conhecimentos ou ferramentas para a gestão do terceiro setor não podem ser bem sucedidas se simplesmente quisermos transplantá-los do segundo para o terceiro setor. O modo como o mercado trata essas questões é – e deve ser mesmo – bastante diferente do modo como a sociedade civil pode tratá-las.

Hoje parece existir um coro apontando as vantagens de aproveitar a expertise de planejamento estratégico das empresas, seus modelos de gestão e seus sistemas de governança corporativa. No entanto, tenho bons motivos para sustentar que, talvez, sejam as empresas que devam aprender agora com a sociedade civil, sobretudo quando o tema é a sustentabilidade.

Sim, as empresas estão diante de um grande desafio: preparar-se para dar conta das novas exigências da sustentabilidade num mundo onde a velocidade das mudanças é vertiginosa e onde o impacto dessas mudanças em uma aérea de atividade repercute diretamente sobre as demais áreas, gerando uma complexidade muito maior do que a verificada em qualquer outra época da história. Assim, não podem mais tratar de estratégia, gestão organizacional, gestão de pessoas e gestão de stakeholders de modo isolado, como se fossem departamentos estanques. Tudo isso agora deve ser encarado do ponto de vista sistêmico (que é o ponto de vista da sustentabilidade). Sustentabilidade, hoje, exige que a empresa atue como agente de desenvolvimento, que saiba fazer a gestão da sua rede de stakeholders, que tenha uma causa para promover o voluntariado interno e externo e que aprenda a articular politicamente não apenas seus interesses, mas também a sua causa, exercendo, para além da responsabilidade social, a sua responsabilidade política. Como se pode ver, várias dessas exigências (padrão de organização em rede, adesão a uma causa, espírito de voluntariado, exercício gratuito da responsabilidade ou cooperação) já constituíam o dia-a-dia (ou, pelo menos, preocupações) das chamadas organizações da sociedade civil antes de entrar no campo de preocupações das empresas.

Sim, as organizações da sociedade civil poderão ajudar muito as empresas nesses temas. Todavia, penso que elas deveriam resistir à tentação de se constituírem como empresas disfarçadas para prestar serviços de consultoria às empresas de verdade. Pois, na verdade, elas não podem (porque não sabem mesmo como fazê-lo) transferir seus conhecimentos, digamos, vivenciais (ou experienciais), para as empresas. Na maior parte dos casos trata-se de conhecimentos tácitos, que não estão sistematizados a ponto de permitir uma transposição não-mecânica para as empresas.

Um caso exemplar que serve para mostrar a incipiência da formulação das organizações do chamado terceiro setor é o chamado netweaving (a articulação e animação de redes distribuídas). Esse é um conhecimento importantíssimo, neste momento, para as empresas que querem fazer alguma coisa em termos da conquista de sustentabilidade, começando por aprender como se faz a gestão de redes que conectem todos aqueles direta e indiretamente interessados e afetados pela sua atuação (i. e., os seus stakeholders). No entanto, a imensa maioria (com certeza mais de 90% das ONGs e assemelhadas) não se organizam, elas próprias, segundo um padrão de rede distribuída. Ainda são, como já disse acima (e como todos sabemos), castelinhos com seus reizinhos (sim, porque é ou não verdade que seus dirigentes costumam ficar no comando para sempre ou quase, mais tempo ainda do que os Secretários-Gerais dos velhos partidos comunistas?).

Sabe-se que, dada a sua natureza multifária e a outras características de uma forma de agenciamento que só se organiza a partir da emergência, uma das características da sociedade civil é que ela aprende fazendo, não em sala e aula nem em reflexões teóricas de seus dedicados expoentes. Mas como ela poderá aprender netweaving (inclusive para ensinar às empresas) se não pratica netweaving, nem interna, nem externamente?

Outro problema é o padrão de relacionamento adotado por essas organizações, quer no interior da própria sociedade civil, quer em relação ao mercado e ao Estado.

Quando, por exemplo, uma organização do terceiro setor quer guardar a sete chaves suas metodologias ou tecnologias (achando que com isso vai assegurar sua vantagem comparativa em relação às suas “concorrentes”), então já está se comportando como uma empresa; ou melhor, já está se constituindo segundo a dinâmica própria de uma forma de agenciamento que caracteriza o mercado, não a sociedade civil. O que caracteriza o terceiro setor não é o fato de ele ser não-governamental (isso as empresas e, a rigor, os parlamentos, também são) e nem o fato de ele ser não-lucrativo (governos e parlamentos também não são lucrativos) e sim o modo como agencia os recursos e se relaciona, entre si e com os outros setores da sociedade.

Repito: se uma ONG se relaciona com suas congêneres na base da concorrência ou da competição, então ela está assumindo uma dinâmica que é própria do mercado, não da sociedade civil. Melhor seria, então, que não disfarçasse sua (verdadeira) natureza e se constituísse formalmente como uma empresa mesmo. Qual é o problema? Empresas são legítimas, são boas, não há nada de errado com elas (a não ser para as consciências que foram colonizadas pela idéia de que o lucro é um pecado ou a razão de todo mal que assola a humanidade, como sustentavam as narrativas ideológicas igualitaristas e totalitaristas). Ou será que ONGs que se comportam objetivamente como empresas não querem se formalizar como tais apenas para auferir vantagens fiscais, pagar menos impostos, como é freqüentemente acusado o terceiro setor por aqueles que não vêem razões para a existência de uma sociedade civil subsistente fora da ordem do Estado e da “lógica” do mercado (é o que pensava, por exemplo, Margareth Thatcher, repetindo, aliás, o que reza a crença econômica ortodoxa)?

Assim como a forma de agenciamento chamada Estado é normativa e a forma de agenciamento chamada mercado é competitiva, a forma de agenciamento chamada sociedade civil (ou terceiro setor) é cooperativa. Se não for, então não subsiste a própria noção de sociedade civil. Eis o ponto!

Discutindo certa vez esse assunto com meu amigo Silvio Sant’Ana, ouvi dele – e inclusive incorporei sua opinião no meu livro “Terceiro Setor: a nova sociedade civil e seu papel estratégico para o desenvolvimento” (Brasília: AED, 2003) – que a característica distintiva do terceiro setor é o fato dele contar com trabalho voluntário, o que é uma outra maneira de dizer: contar com a cooperação – uma forma gratuita de atividade, de ajuda-mútua ou de doação à uma causa fraterna, gerada, talvez, como supõe Maturana, não propriamente por uma racionalidade (no sentido de cálculo ou escolha racional) mas por uma emocionalidade que está na fundação mesmo daquilo que chamamos, stricto sensu, de ‘social’.

Sim, Silvio tem razão. Se não há voluntariado (ou se não há cooperação efetivamente praticada) em uma organização do terceiro setor, então alguma coisa está errada. Não basta ensinar aos outros como cooperar ou como promover programas de voluntariado. Isso é útil, por certo. Mas pode ser feito por uma empresa. Ademais, um velho professor de álgebra, chamado Shaeffer, com quem tomei aulas em 1968, no Rio de Janeiro, costumava dizer: “quem sabe faz, quem não sabe ensina”.

É claro que a objeção sempre levantada nesses casos é a seguinte: mas como as pessoas vão sobreviver, como os dirigentes e os profissionais das organizações do terceiro setor vão poder se dedicar a sua missão se não receberem alguma remuneração? Sempre aceitamos esse argumento como definitivo, mas não é: é abusivo (no sentido literal do termo). Não digo que não deva haver pessoas remuneradas na direção de organizações da sociedade civil (aliás, eu mesmo defendi isso, na Lei das OSCIPs). O sinal de que alguma coisa está errada aparece quando todos são remunerados e, mais do que isso, se comportam como se fossem funcionários de uma empresa... e, conseqüentemente, a própria organização se comporta como uma empresa. Isso me faz lembrar aquela anedota: tem rabo de porco, focinho de porco, orelha de porco, pé de porco, mas... (se não é feijoada), por que não deveria ser porco?

Estou convencido do seguinte: as organizações do terceiro setor (integrantes daquela parcela da sociedade civil que gosta de se apresentar como “sociedade civil organizada”), não vão conseguir sair dessa ambigüidade se não modificarem seus padrões de organização. Organizações piramidais, verticais, hierárquicas, exigem burocracias. Burocracias exigem mais burocracia. Não é uma opção. É uma necessidade que se impõe pela dinâmica de funcionamento que acompanha o padrão de organização.

Por isso venho dizendo: querem fortalecer a nova sociedade civil (aquela composta por milhões de cidadãos desorganizados segundo um ponto de vista tradicional, mas cada vez mais conectados) que está emergindo nos últimos anos? Então não construam organizações hierárquicas, façam redes. Agora, se o problema é ganhar a vida – e devemos todos ganhá-la com nosso trabalho – então fundem empresas ou prestem consultorias como pessoas físicas, ministrem palestras, dêem aulas, escrevam livros, exerçam uma profissão liberal ou arranjem um emprego. Não será isso que impedirá a nossa atuação no terceiro setor.

E se querem continuar, vamos dizer, atuando profissionalmente no terceiro setor, trabalhando em um centro de estudo ou pesquisa, em um clube, em uma associação, então se esforcem para praticar a cooperação, para agregar e promover trabalho voluntário, para se organizar e se relacionar segundo um padrão de rede e para radicalizar a democracia onde ela pode ser radicalizada (no nível local da sociedade civil, no âmbito comunitário). É claro que cabe muito mais coisa no terceiro setor. Mas, do ponto de vista de quem está comprometido com o desenvolvimento humano e social sustentável, a meu ver é isso que justifica – em termo racionais – querer ficar nele. Reconheço, entretanto, que as pessoas que se envolvem com organizações do terceiro setor não o fazem, em sua maioria, a partir de uma escolha racional e sim co-movidas por uma emocionalidade cooperativa, o que é bem bacana, mas não refresca muito, no sentido de que não altera a realidade enfocada nesta carta. Ou seja, a despeito dos motivos que levam a maioria das pessoas a desenvolver uma atuação no terceiro setor serem maravilhosos, ao se organizarem para tanto freqüentemente essas pessoas adotam padrões de organização que não são tão maravilhosos assim.

Vivi profissionalmente, durante vários períodos, recebendo remuneração pelo meu trabalho em organizações da sociedade civil. De uns tempos para cá, porém, não tenho feito mais isso. Mas continuo atuando no terceiro setor. Como? Ora, como cidadão, como participante de redes. Tudo indica que a alternativa organizativa mais inovadora para o terceiro setor são as redes de pessoas (e já expliquei porque, em muitas cartas como esta). Redes (e me refiro a redes propriamente ditas, redes de pessoas, com topologia distribuída, não a holdings ou frentes de instituições abrigadas sob o guarda-chuva da palavra ‘rede’, que está na moda) são o modo de organização compatível com a “lógica” e a racionalidade da sociedade civil. Aliás, o próprio conceito de sociedade civil tende a ser substituído pelo conceito, muito mais potente em termos analíticos e mais preciso em termos descritivos, de rede social.

Há ainda uma outra objeção, também freqüente, que é a seguinte: mas as redes são informais! Como vamos abrir uma conta bancária, tirar um CGC, contratar funcionários, emitir nota fiscal, receber doações, não pagar imposto de renda e outros impostos e, em alguns casos, ser dispensados da quota patronal à previdência social?

Bom, em primeiro lugar é preciso saber se precisamos mesmo dessas coisas. Em muitos casos, sim. Em outros, não. Se estamos naquele tipo de organização que tem tudo de porco mas não quer ser porco, não é muito justo que recebamos alguns desses benefícios. Além disso, uma empresa sempre pode ter parte dessas coisas. Mas outra parte, que se refere à renúncia fiscal e, em qualquer caso, a indevida isenção da quota patronal (indevida sim, pois em um sistema contributivo universal ninguém deveria ter o direito de não-contribuir, mesmo a pretexto de salvar a espécie humana), seria necessário examinar cuidadosamente os motivos capazes de justificar o recebimento desses benefícios. Uma organização que não pratica a cooperação, que não conta com trabalho voluntário, que se estrutura e funciona internamente como uma empresa e, ainda por cima, que compete por recursos com suas congêneres no mercado, não deveria ter direito a essas coisas. Em nome de quê? De suas boas idéias para a humanidade? Ora, tenha paciência!

De qualquer modo, se articulamos e animamos uma rede e, por algum motivo, precisamos de uma organização formal para cumprir exigências formais, nada impede que construamos uma entidade legalmente reconhecida (ou várias) para tais efeitos (formais). O problema não é de ordem legal, mas diz respeito ao padrão de organização que adotamos e, não raro, tem a ver com questões de poder e, em alguns casos, de apropriação privada, ainda que indireta, por meio do acesso diferencial a alguma vantagem, serviço ou recurso, de eventuais superávits produzidos ou valores recebidos (a título de doação, fomento ou por qualquer outra forma). Quando há patrimônio envolvido, como no caso de algumas fundações privadas, aí sim as exigências legais vão além da formalidade e tornam-se de fato necessárias, inclusive para salvaguardar direitos.

Ou seja, não estou propondo nenhum tipo de desconstituição do imenso conjunto de organizações hierárquicas e burocráticas da sociedade civil que existe hoje. É óbvio que é melhor ter esse conjunto de organizações do que não ter nada e a vantagem disso não está, como se poderia pensar, nas virtudes das formas de organização que existem, mas na sua diversidade, na sua multiplicidade, na sua pulverização e na impossibilidade prática de organizar tal conjunto top down. Em outras palavras, a força da sociedade civil que temos está justamente no fato dela não poder ser organizada pelas organizações da sociedade civil que temos. Ainda bem. Como escreveu o ficcionista Frank Herbert – uma pérola que encontrei em “O Messias de Duna” (1969) e que cito freqüentemente – “não reunir é a derradeira ordenação” (o que é uma forma literária mais sofisticada de dizer que ‘o povo desunido jamais será vencido’, como brincávamos no início dos anos 90, os que percebíamos os riscos de querer representar, por meio de uma dúzia de organizações da sociedade civil, o conjunto da sociedade civil supostamente “organizada”).

Mas o problema que coloquei aqui não diz respeito à conservação do que existe e sim à inovação. O que afirmei no início desta carta é que se ficarem estacionadas nos padrões de organização que vêm adotando, as organizações da sociedade civil não cumprirão mais um papel inovador. Não apenas porque deixarão de inovar internamente em termos organizacionais e sim porque não terão experiência de inovação nas suas relações dentro da própria sociedade civil e com os outros setores da sociedade. Não descobrirão coisas novas em relação à natureza e a dinâmica do próprio setor a que pertencem. E não contribuirão para fortalecer a nova sociedade civil que está emergindo.

Se quiserem cumprir tal papel inovador, as organizações da sociedade civil têm que voltar os olhos para o cidadão, desorganizado do ponto de vista tradicional, mas muito mais conectado do que em qualquer outra época da história, que está emergindo neste dealbar do século 21. É incrível como, quando se fala de sociedade civil, esquece-se de que ela é composta por cidadãos. Fala-se ainda de "sociedade civil organizada" como se isso fosse grande coisa diante de milhões de pessoas que podem opinar e participar, não arrebanhadas ou acarreadas (esse é um bom termo, usado pelos mexicanos, que tiveram quase um século de experiência no assunto) por organizações hierárquicas, mas diretamente, uma-a-uma, personalizadamente. Não há outra maneira de fazer isso senão apostando nas redes, nas redes que conectam pessoas com pessoas, segundo uma topologia distribuída (e não centralizada ou descentralizada), peer-to-peer.

Se quiserem cumprir tal papel inovador, as organizações da sociedade civil têm de mudar as suas relações com suas congêneres (as outras organizações da sociedade civil). Não podem contribuir para transformar o campo social em uma esfera de competitividade. Quem tem de ser competitivo é o mercado (e a economia é que deve ser de mercado) não a sociedade. E mercados competitivos, ao que tudo indica, exigem como base uma sociedade cooperativa (por razões econômicas mesmo, como a diminuição das incertezas que afetam os investimentos produtivos de longo prazo, com a redução dos custos de transação e, inclusive, da insegurança jurídica). É o que vêm revelando, nos últimos quinze anos, todas as teorias do capital social (que é apenas uma outra denominação para rede social). Uma sociedade competitiva constitui, em geral, péssimo ambiente para um mercado competitivo. Portanto, temos aqui um argumento adicional, em termos do desenvolvimento, para trabalhar estrategicamente em prol da reprodução ampliada da cooperação, sobretudo naquela única esfera da realidade social que produz mais capital social do que é capaz de consumir, ou seja, a sociedade civil.

Se quiserem cumprir tal papel inovador, as organizações do terceiro setor têm que começar a modificar a sua relação com os outros setores, com o segundo setor (o mercado) e com o primeiro setor (o Estado). Não podem ficar querendo prestar serviços ao mercado como se fossem entes de mercado e, ao mesmo tempo, receber benefícios do Estado como se não fossem entes de mercado (olhaí “o porco falando do toucinho!”).

Nesta carta me concentrei na análise do caráter para-mercantil que algumas ONGs vêm adotando. Mas haveria também muito a dizer sobre o seu caráter neo-governamental, sobretudo nestes últimos anos, em que surgiram numerosas organizações burocráticas da sociedade civil para celebrar convênios e termos de parceria com um governo federal que queria favorecê-las por razões políticas. Aqui, porém, já resvalamos para o tema da ‘corrupção de Estado’ como meio de conquista de hegemonia. Voltarei ao assunto algum dia.

Promover o desenvolvimento humano e social sustentável e ensaiar a democracia no sentido “forte” do conceito, na base da sociedade e no quotidiano dos cidadãos, constituem os dois papéis principais – e mais do que isso, papéis únicos, insubstituíveis – que podem ser cumpridos pelo terceiro setor. Seria uma lástima se, por incompreensão dessas tarefas estratégicas ou por razões de sobrevivência colocadas por uma visão míope de sustentabilidade, o terceiro setor passasse a se comportar como uma espécie de ‘para-mercado’ ou conjunto de organizações ‘neo-governamentais’ (como brincou certa vez Manuel Castells e o critiquei na época, mas agora vejo que ele tinha alguma razão).

* ‘Carta Rede Social’, ex-‘Carta Capital Social’ (e antiga ‘Carta DLIS’) é uma comunicação pessoal de Augusto de Franco enviada quinzenalmente, desde 2001, para mais de 5.000 agentes de desenvolvimento e outras pessoas interessadas no assunto, de todo o Brasil.


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