domingo, 12 de abril de 2009

Que fundo é esse? - Projeto da Lei Rouanet prestigia o ‘fundo setorial’ e desvaloriza a renúncia fiscal

Cultura virou Imposto de Renda. Pelo menos no Brasil, onde o incentivo por meio da renúncia fiscal prevista na Lei Rouanet se tornou nos últimos quase 20 anos a principal maneira de investimento em projetos culturais. Agora, as regras podem mudar - desde o mês passado o Ministério da Cultura (MinC) colocou sob consulta pública na internet, no site da Casa Civil, por 45 dias, um projeto de lei para uma nova Rouanet. A mudança que mais tem mobilizado a classe artística é a que diz respeito ao Fundo Nacional de Cultura (FNC), mecanismo que o MinC quer privilegiar com a nova lei. É justamente no Fundo que, segundo os críticos ao projeto, se esconde a expressão que faz o governo sentir arrepios e é usada pelos artistas quase como palavrão: dirigismo cultural.

- Seria péssimo para mim, no dia em que eu botar o pijama para me aposentar, que eu constatasse que contribuí para um modelo dirigista. Não quero isso na minha biografia - defende-se o ministro da Cultura, Juca Ferreira, artífice da nova lei. - Eu, pessoalmente, não amo o Estado. Não tenho esse pendor afetivo. O Estado é um ente historicamente necessário, mas que convive na esfera pública com pelo menos dois outros entes: a sociedade civil e os empreendedores.

O Fundo, propriamente dito, não chega a ser novidade. Ele já existe na Rouanet atual, mas é muito pouco utilizado. Só 12% do estímulo à cultura são provenientes dele.

Com a nova lei, o governo pretende que ele tenha mais recursos para acabar com a concentração de fomento no mecanismo de renúncia, usado atualmente para 73% do incentivo. Com a renúncia, depois de aprovado pela Rouanet, um projeto cultural deve conseguir o patrocínio de uma empresa, que se beneficiaria do desconto no Imposto de Renda. Com o Fundo, a simples aprovação pela Rouanet já significaria patrocínio: por investimento direto do MinC, empréstimo, sociedade com o ministério ou parceria público-privada.

O FNC seria subdividido em cinco fundos setoriais (das Artes, do Livro, do Patrimônio, da Cidadania e Diversidade e - para projetos de mais de uma área - de Equalização).

Está previsto que cada um tenha um conselho, formado por representantes do MinC (50%) e por representantes da sociedade e de cada setor (50%). Esses conselhos teriam autonomia para aprovar os projetos e decidir quanto vale cada um. É na formação dos conselhos e nos seus critérios de avaliação de projetos que mora o perigo, de acordo com as críticas que a nova Rouanet vem recebendo.

- Talvez a solução dos conselhos seja boa, mas com alta pressão da sociedade, para não haver jogo político - afirma o músico Roberto Frejat, para quem uma consulta pública pela internet, de 45 dias, não é suficiente. - Teria de ficar por mais tempo, e haver encontros. Este governo adora um fórum. Isso é assunto para um fórum.

O ministro Juca Ferreira tenta acalmar os críticos garantindo que os conselhos setoriais vão funcionar nos moldes de um outro conselho que já existe atualmente, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Cnic) - o conselho que, hoje, analisa justamente os projetos da renúncia fiscal e que “nunca foi acusado de dirigista”, como sublinha o ministro.

Não é difícil saber por que as decisões do Cnic não recebem acusações.

Os conselheiros do Cnic usam critérios técnicos, como exige o Artigo 22 da atual Rouanet: “Os projetos enquadrados nos objetivos desta Lei não poderão ser objeto de apreciação subjetiva quanto ao seu valor artístico ou cultural.”

Lei exclui artigo que vetava apreciação subjetiva
Sem especificar critérios, projeto cria ´sistema de avaliação que contemplará a acessibilidade do público´

No entanto, na reciclada Rouanet, o artigo que proibia critérios subjetivos de avaliação foi suprimido, e um novo, o 31, foi criado. Esse estabelece que: “Os projetos passarão por um sistema de avaliação que contemplará a acessibilidade do público e aspectos técnicos e orçamentários, baseado em critérios objetivos, transparentes e que nortearão o processo seletivo.” A nova Rouanet também cita um “sistema de pontuação” que basearia a análise dos projetos candidatos à renúncia fiscal.

Críticos acham que esses critérios já deveriam estar especificados na nova lei.

- O risco é essa presença do Estado se transformar em mecanismo ideológico, partidário - teme o artista plástico Cildo Meireles. - Se todos se comportarem direitinho, pode funcionar, sim. Mas é que nem aquele velho ditado do futebol: já combinou com o adversário? Vai combinar com todos os conselheiros?

Conselheiros teriam mandato de dois anos
As críticas da classe artística, porém, não são unânimes.

A atriz Fernanda Torres, por exemplo, acha que o ministério “tem o direito de querer mais ingerência sobre um dinheiro que é público”.

- É dinheiro de imposto. Tá certo - diz ela. - Acho que, para os artistas, sempre vai ter alguém para quem levar o seu projeto, seja empresa ou governo. Não quero valorar, dizer se vai ou não funcionar. Mas espero que a nova lei corrija as distorções que existem.

Em busca da tentativa de acabar com as distorções lembradas por Fernanda Torres, o MinC aposta na qualificação dos conselhos.

- A Cnic vai assumir os fundos setoriais, e com qualidade maior, porque nela haverá conselheiros ligados ao setor que estará sendo analisado - explica Juca Ferreira. - Isso será feito no caso dos fundos e também para a renúncia. A renúncia não vai acabar. Se fôssemos inimigos da renúncia, não teríamos aumentado o montante para ela de uns R$ 200 milhões, como era anos atrás, para R$ 1,2 bilhão, como foi no ano passado.

O ministro explica um dos pontos que são motivo de debate mesmo para as parcelas da classe artística que defendem as mudanças: como será a escolha dos integrantes dos conselhos setoriais.

- Será como é hoje para a Cnic: abre-se a fase de candidatura, e as pessoas se candidatam. Exatamente para evitar dirigismos, estamos ampliando para o FNC a gestão compartilhada feita atualmente para a renúncia. Além disso, esses conselhos têm rodízio, os conselheiros terão mandatos de dois anos - diz o ministro, adiantando ainda que a nova lei determina que pelo menos 80% da verba do FNC vão para “iniciativas da sociedade”, ou seja, para projetos não ligados ao governo. - Hoje, governo federal, estados e municípios, por falta de dinheiro, usam muito a Rouanet para fazer suas ações culturais. Com pelo menos 80% indo para a sociedade, acaba essa concorrência desleal entre os governos e os artistas.

Critérios de aprovação ficaram para mais tarde
De qualquer forma, a classe artística reclama de o projeto do MinC deixar em aberto muita coisa para ser resolvida depois, só na regulamentação da lei. O diretor Mauro Mendonça Filho resume essa preocupação:

- O perigo não é o presente. É o futuro - diz Mendonça Filho. - Este governo pode ser bem-intencionado, mas e os que vierem depois?

Um saco sem fundo para a cultura
De onde vai vir o dinheiro para o FNC

Um dos nós a serem desatados pelo MinC na nova Rouanet é como financiar cada fundo setorial. O modelo que já existe é o do Fundo do Audiovisual, que é abastecido, entre outras receitas, pela Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional) - uma taxa que é cobrada de todo produto audiovisual.

A nova lei não prevê a criação de contribuições para outros setores, mas o ministro Juca Ferreira já articula criar algumas delas, fora da lei, para que se juntem aos recursos próprios do ministério na hora de alimentar a verba dos novos fundos.

Fundo do Patrimônio e Memória: Pode ganhar uma contribuição de cerca de 1% sobre os royalties das atividades mineradoras, como contrapartida pelo impacto que causam no setor de patrimônio, sobretudo o arqueológico.

Fundo do Livro e Leitura: Para o MinC e a Câmara Brasileira do Livro, é um acordo acertado. Haverá uma contribuição de 1% sobre o lucro de toda a cadeia do livro, que vai para o fundo.

Fundo das Artes: Fundo que inclui música, artes cênicas e artes plásticas. Deve ser alimentado pela Loteria da Cultura, projeto ainda a ser criado, e pelos 3% de arrecadação das loterias atuais. Esse último percentual já é previsto em lei, mas, segundo o ministro Juca Ferreira, tem uma arrecadação pouco controlada.

Fundo da Cidadania e Diversidade: Sem contribuições estudadas.

Fundo Global de Equalização (para projetos de mais de um setor): Sem contribuições estudadas.


Alessandra Duarte
O Globo, 09/04/09

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Governo vai criar um vale-desperdício?

Leio na coluna da Mônica Bergamo que deve chegar a R$ 800 milhões o tamanho da renúncia fiscal do vale-cultura --é o modelo do ticket refeição, fornecido pelas empresas, mas agora usado para que os empregados tenham mais acesso a cinema, teatro, shows, exposições, concertos. Quem pode, afinal, ser contra essa ideia tão simpática e civilizada?

Venho participando de uma experiência que me faz suspeitar que esse vale-cultura pode ser mais um daqueles desperdícios brasileiros, movidos à boa intenção.

Um grupo de jornalistas recém-formados, outros ainda na faculdade, decidiu montar um guia cultural e educativo (www.catracalivre.com.br) com as atividades gratuitas ou a preços populares da cidade de São Paulo. Eles passam o dia garimpando essas atividades não só nas áreas centrais, mas nas periferias --ou até lugares não convencionais como um bar que promove sarau ou um cinema numa laje ou num beco. São tantas a opções que, muitas dias, é como se a cidade tivesse uma espécie de Virada Cultural.

Por causa disso, comecei a prestar a atenção ao fato que eventos de ótima qualidade em museus, teatros, salas de concertos, não atraem muita gente --e muitas vezes apenas pela falta de informação. Escolas e faculdades ao lado de museus ou centros culturais, por falta de informação, não estimulam seus alunos a ir aos eventos, apesar de gratuitos.

Meu receio, portanto, é que, com esses R$ 800 milhões se estimule, com dinheiro público, acesso à cultura exclusivamente comercial.

Se é para gastar esse dinheiro, seria melhor usado se facilitasse o transporte e monitoria para as pessoas visitarem o que já existe e é pouco usado. Sei de muitos professores frustrados porque não têm como levar seus alunos a uma exposição.


Gilberto Dimenstein
Membro do Conselho Editorial da Folha e criador da ONG Cidade Escola Aprendiz. Coordena o site de jornalismo comunitário da Folha. Escreve para a Folha Online às segundas-feiras.
Folha Online, 10/04/09

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