sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Corrupção cresce e é muito grave

Daniel Dantas (ao fundo) sai do IML, onde fez exame de corpo de delito: respostas de entrevistados explicam, em parte, por que a indignação não tem revertido em mudança na cultura política do país
Foto Fernando Donasci

Policial que achaca cidadão é um corrupto execrável. Contribuinte que suborna funcionário público, nem tanto. Empresário que financia campanha com interesse em receber privilégios do eleito comete ato abominável. Parar em fila dupla não é motivo para tanta indignação.

Nunca se falou tanto em corrupção no país. E o brasileiro nunca a achou tão grave. Mas seus danos são considerados piores ao interesse público se originária do governo ou dos empresários. E tanto menores se tem como origem os atos do cotidiano dos brasileiros, vítimas que se consideram do Estado e do capital.
Essas conclusões estão na mais ampla pesquisa que já se fez sobre o tema até hoje no país e publicada, com exclusividade, pelo Valor.

Encomendada ao Vox Populi, a pesquisa ouviu 2.421 pessoas em todo o país, desde Sucupira do Riachão, minúscula cidade na divisa do Maranhão com o Piauí, sem um único hospital, até a rica Caxias do Sul (RS), passando pelas capitais de todos os Estados.

A pesquisa é o primeiro produto do Centro de Referência do Interesse Público, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Com financiamento das Fundações Konrad-Adenauer e Ford, o centro promoverá um seminário para discutir os resultados da pesquisa, tem no prelo um dicionário sobre o tema - "A Corrupção: Ensaios e Críticas" - de mais de 400 páginas reunindo 61 acadêmicos de todo o país, mais 10 livros em que os tópicos são esmiuçados e ainda um CD-ROM que levará a discussão a escolas de ensino médio e universidades em todo o país.

À frente do grupo, os professores Leonardo Avritzer, Newton Bignotto, Juarez Guimarães e Heloísa Starling, todos da UFMG, unidos pela tentativa de compreender como a corrupção resiste às mudanças institucionais que vêm sendo empreendidas no Brasil desde a redemocratização. Partiram do pressuposto de que a legítima indignação nacional com os casos que envolvem a elite política nas últimas décadas e as conseqüentes abordagens moralistas do tema não levam à compreensão sobre as origens e os efeitos da corrupção. E os dados colhidos pelo Vox Populi vieram, em grande parte, corroborar essa percepção.

Na pesquisa, 77% dos entrevistados dizem considerar a corrupção no Brasil muito grave. Essa percepção é tanto maior se o entrevistado for homem, morador de áreas urbanas do norte ou sudeste do país, tiver curso universitário e renda acima de dez salários mínimos.

A percepção de que a corrupção aumentou nos últimos cinco anos ainda tem a concordância de acachapantes 73% da população, mas aqueles que mais radicalmente acreditam nisso estão na faixa mediana de escolaridade e renda.

Na terceira pergunta do questionário, depois de terem assegurado, majoritariamente, que o problema é grave e aumentou nos últimos anos, os entrevistados concordam, em um porcentual igualmente alto - 75% - que o que aumentou não foi a corrupção, mas a apuração de casos submersos.

Essa percepção é mais forte se o entrevistado é do nordeste, mora na área rural, tem curso fundamental e ganha de um a três salários mínimos. E, apesar de essa visão coincidir com os segmentos em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva colhe sua maior aprovação, sete em cada dez entrevistados com renda superior a dez salários mínimos, escolaridade universitária e morador do Sudeste também acreditam nisso.

É nos questionários em que o entrevistado é convidado a escalonar instituições, pessoas e atitudes corruptas, no entanto, que se explica, em parte, por que a indignação não tem revertido em mudança na cultura política do país.

Entre as instituições, a Câmara de Vereadores é percebida como mais corrupta que o Senado Federal. O dia-a-dia dos cidadãos, que é mais afetado pelas mudanças no zoneamento urbano do que pela sabatina de um diretor do Banco Central, ajuda a entender a resposta. Mas também revela como é mais fácil para o cidadão comum compreender a corrupção no Estado que libera uma licença de edificação ou ponto comercial, do que em decisões do Banco Central, cuja arbitragem da taxa de juros faz a fortuna de uns e a ruína de outros.

Quanto mais próximos os atos corruptos estiverem do cidadão, mais inversamente proporcional é a lógica. Daí por que pagar propina para obter uma licença ou invadir uma terra pública são atos mais aceitáveis do que o achaque por parte de um policial ou o abuso do poder econômico de um empresário que financia ilicitamente uma campanha eleitoral.

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Os danos da corrupção são considerados piores ao interesse público se ela é originária do governo ou dos empresários
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Entre Polícia Federal, Judiciário e Congresso, os dois primeiros são, de longe, instituições que gozam de mais respeito entre os entrevistados. A quantidade de escândalos que o Congresso já protagonizou explica essa percepção, mas dificilmente essa imagem teria se cristalizado se a Casa não fosse mais aberta ao escrutínio da sociedade do que as demais. Suas votações, as sessões de suas comissões, as emendas ao orçamento são muito mais escarafunchadas pela imprensa do que as brigas internas da Polícia Federal ou a aplicação das verbas intocadas do Judiciário. Enquanto as baixarias das CPIs são transmitidas ao vivo e em cores para todo o Brasil, as reuniões internas da Polícia Federal têm seu conteúdo divulgado em pílulas, de acordo com os interesses dos governantes de plantão.

A preservação da imagem da Polícia Federal e do Judiciário ajuda a explicar a idéia, que está entre as que agregram maior concordância dos entrevistados, de que faltam no Brasil leis mais duras e força no seu cumprimento. Fernando Filgueiras, um dos pesquisadores do Centro de Referência do Interesse Público, vê na resposta obtida pela pesquisa a cristalização da visão da política como o reino do direito penal. A política perde o sentido como exercício de responsabilidade, individual e coletiva, e se deixa invadir pelo universo policial.

A dificuldade em se fortalecer a noção de responsabilidade nos cidadãos é, em grande parte, decorrente da fragilidade do conceito de interesse público. E não há como combater a corrupção sem que se tenha cristalizada a noção de interesse público, diz Juarez Guimarães.

Quanto mais desigual a sociedade, mais difusa é a noção de interesse público. Se o Estado não está a serviço da coletividade, que pelo menos dê vazão ao que parece consenso na sociedade - grassa o recurso a apelos autoritários ou ao que se tornou praxe chamar de "espetacularização" da polícia. Essa aceitação do autoritarismo aparece no questionário sobre o enquadramento legal dessas instituições no combate à corrupção. A Polícia Federal tem o apoio majoritário da população, apesar de 48% dos entrevistados acreditarem que, às vezes, os policiais agem ao arrepio da lei.

Exorciza-se, assim, por meio de instituições que, com a consonância geral, margeiam a lei, a revolta contra a corrupção cotidiana do cidadão que estaciona em fila dupla, da empresa telefônica que desrespeita os direitos do assinante e da escola que mantém crianças de dez anos analfabetas.

O aplauso ao espetáculo do Estado policial, em contraposição à leniência com que se aceitam as trapaças do cotidiano, fomenta a desconfiança nas relações interepessoais e, com ela, a desmobilização e a apatia política. Dados citados pelo professor Fábio Wanderley Reis em capítulo do livro "A Corrupção - Ensaios e Críticas" indicam que o Brasil é o país campeão dos desconfiados. Não mais que 3% dos brasileiros respondem positivamente à pergunta sobre se se pode, em geral, confiar nas pessoas. Nos países escandinavos, a proporção é de 65%.

Essa desconfiança despenca diante de pobres, velhos e mulheres. Na pesquisa Vox Populi, as pessoas mais pobres estão no panteão da honestidade. As mais velhas vêm em seguida e, logo depois, as mulheres. Estas chegam a ser consideradas mais honestas pelos homens do que por elas mesmas. A gentileza não é recíproca. Os homens têm de si uma imagem de mais honestidade do que a das mulheres sobre eles. E, quanto mais velhas e pobres, mais impoluta é a imagem feminina.

É verdade que há registros esparsos de mulheres no banco de réus de uma CPI (a ex-deputada Raquel Cândido foi cassada em 1994, depois de ter sido incriminada no escândalo dos Anões do Orçamento), algemadas pela Polícia Federal ou na fila dos habeas corpus do ministro Gilmar Mendes, mas a professora da UFMG Marlise Matos, em outro capítulo do livro, desmonta a tese de que gênero é filtro de corrupção.

Diz que, no mundo inteiro, as parlamentares estão tão envolvidas em corrupção quanto os homens. E levanta uma hipótese plausível, a de que as mulheres freqüentam menos os escândalos de corrupção pelo simples fato de que estão mais raramente expostas a esses. No Brasil, por exemplo, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados é um tradicional locus de presença feminina no Congresso. Lá, entre 32 integrantes, há cinco deputadas. Já na Comissão Mista de Orçamento, entre seus 47 parlamentares, não há uma única mulher.

Na safra atual de governadoras, no entanto, a do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius (PSDB) é alvo de uma CPI pela Assembléia Legislativa e a do Rio Grande do Norte, Vilma de Faria (PSB), teve seu filho (homem, lembrariam os entrevistados) preso em operação da Polícia Federal.

Mas a percepção nacional de que as últimas pessoas de quem se desconfia numa trapaça são as pobres velhinhas diz muito mais sobre a cultura política brasileira do que sobre as razões do voto. Elas produzem um raro consenso entre a família e o Estado. É delas que ambos menos se ocupam. E é sobre essas campeãs da honestidade tupiniquim que se expia a culpa coletiva pela ausência da responsabilidade no cultivo do interesse público.


Maria Cristina Fernandes, de Belo Horizonte
Valor Online, 01/08/08


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