sexta-feira, 20 de julho de 2007

A vida começa aos 60

Danilo Fariello e Catherine Vieira
Publicado pelo
Valor Online 20/07/07

"No dia seguinte ninguém morreu." Assim começa o romance "Intermitências da Morte", de José Saramago, que trata da súbita ausência de óbitos em determinada cidade e das absurdas conseqüências do desaparecimento da Indesejada no cotidiano. No mundo real, a Malfadada não pendurou a foice, mas parece cada vez mais preguiçosa. A expectativa de vida mundial cresceu mais nos últimos 50 anos do que nos cinco milênios anteriores. Os centenários já não são raros nos países desenvolvidos e muitos chegam à terceira idade com saúde e dinheiro para continuar a fazer diferença no mundo. Assim como na fábula do Nobel de literatura, uma revolução acontece à medida que as pessoas passam mais tempo neste mundo. Do ponto de vista econômico, governos têm de lidar com novas questões na saúde, na previdência e nas relações de trabalho. Empresas ganham um novo nicho com um exército de idosos que se forma. E as pessoas, já com idade avançada ou jovens ainda, devem estar preparadas para viver cerca de 20 anos mais do que os seus avós.

Essa revolução se dá, agora, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, onde a longevidade já atinge níveis mais elevados. Multiplicam-se consultorias de marketing e negócios que oferecem estudos sobre os mercados denominados 50+ ou 60+. Lemas como "transforme o grisalho em dourado" ou o irônico "viva até os cem, ou morra tentando" tomam conta da mídia nessas regiões. Os países mais desenvolvidos enfrentam o envelhecimento dos chamados baby boomers, pessoas que nasceram após o término da Segunda Guerra, em 1945, e agora chegam à terceira idade. Pululam produtos e serviços para esse público, como o cranky.com, um site de busca cuja relevância das respostas é a idade do internauta. Os mesmos executivos por trás do cranky, de Boston, criaram o eons.com, uma espécie de Orkut para cabeças brancas ou tingidas.

Segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a parcela da população acima de 65 anos crescerá em média 80% nas sete maiores economias industrializadas até 2050, quase 90% na Rússia, e ainda mais rápido no Brasil, China e Índia. Aqui, o número de pessoas com mais de 65 anos passaria de 5,4% no ano 2000 para 19,2% em 2050. Entre as grandes economias emergentes, apenas a Índia terá idade média abaixo de 40 anos nas próximas décadas, segundo estudo da OCDE produzido no ano passado.

Fatalmente, todos os setores econômicos são afetados pelo aumento da longevidade, inclusive o de entretenimento. Percebe-se essa influência, por exemplo, na produção de filmes cujo foco é o vigor das experiências na velhice, como nos casos de "Elsa e Fred", "Alguém Tem que Ceder" e o nacional "O Maior Amor do Mundo", descoberto por José Wilker na maturidade. Músicos sexagenários, como Bob Dylan e Paul McCartney, voltam com força às paradas de maior sucesso, inclusive no iPod. As novas tecnologias não assustam os mais velhos, como se poderia imaginar: nos Estados Unidos, nada menos que 94% dos boomers (aqueles que nasceram de 1945 a 1955) têm internet em casa.

Como nas culturas indígenas e orientais, o mercado passa a tratar a velhice como sinal de sabedoria, mas, notadamente, de bolso cheio. No ano passado, uma conferência do Hay Market que levou o nome de "Older, richer, wiser" (mais velhos, ricos e espertos) reuniu grupos de mídia, financeiros, de varejo e, principalmente, de lazer, para discutir como explorar melhor esse público representado por números bem estimulantes: 70% dos cruzeiros são freqüentados por pessoas com mais de 50 anos, a mesma faixa em que se vendem 60% dos carros de luxo e 55% dos cosméticos. "O desafio do século XXI é lidar com esse novo mercado", diz Richard Jones, diretor global de previdência complementar do HSBC, que participou do evento do Hay Market.

O lado negativo do envelhecimento da população recai, principalmente, nas costas dos governos. Até 2050, a Europa terá apenas dois trabalhadores para cada aposentado, proporção que hoje é de quatro para um, segundo o estudo "Can Europe afford to grow old?", elaborado pela Comissão Européia de Assuntos Econômicos e Financeiros, publicado no site do Fundo Monetário Internacional (FMI). O estudo aponta riscos para o crescimento econômico europeu no futuro por conta do encolhimento e envelhecimento da população.

Para os autores desse texto, os gastos relacionados à idade da população (incluindo previdência, entre outros) crescerão entre 3% e 4% do PIB até 2050 nos países europeus, o que equivaleria a um aumento de 10% no tamanho do setor governamental. Enquanto atualmente há 35 pessoas acima de 65 anos para cada 100 trabalhadores, em 2050 serão 72 pessoas. Não é necessário chegar perto de uma calculadora para imaginar que faltarão recursos para financiar a aposentadoria de tantos idosos no futuro, se todos se aposentarem aos 65 anos.

Chefe do programa de envelhecimento da Organização Mundial de Saúde (OMS), o brasileiro Alexandre Kalache alerta que está em curso uma enorme mudança de paradigmas, provocada pelo aumento da longevidade, acompanhado de uma redução das taxas de fecundidade. "Até o início dos anos 2000, esse quadro ainda não estava tão claro", lembra ele, apontando que o fenômeno é recente e vai exigir também uma mudança profunda nos costumes. "Tolstói disse que o envelhecimento foi a coisa mais súbita que lhe aconteceu, mas a verdade é que não existe nada mais previsível. Então, é preciso ter sabedoria para se preparar", diz.

Kalache lembra também que os dados de longevidade refletem a expectativa de vida média ao nascer, mas o detalhe mais importante é a expectativa de sobrevida, ou seja, o número estimado de anos excedentes em relação a uma certa média, que tem mudado com o passar do tempo. "Uma mulher, na França, com 60 anos, por exemplo, ainda deve viver mais 30", explica. Contudo, na época em que essa geração de sexagenários nasceu, chegar aos 90 era algo quase impensável. Hoje, esse é o nível médio. "As mulheres são mais longevas e, por essa lógica, o natural seria que se casassem com homens mais novos", brinca Kalache, ao contrário do que se imagina ser mais "normal".

Mas o que as francesas têm a ver com as brasileiras? É simples. Segundo os especialistas, as classes A e B no Brasil tendem a estar muito mais alinhadas com as projeções de longevidade dos países mais desenvolvidos do que a média dos brasileiros. O poder aquisitivo, portanto, também é um fator que tem efeitos sobre a expectativa de viver mais. Moradores de um prédio de luxo de São Paulo tendem a ter 14 anos mais de expectativa de vida do que os habitantes de uma favela do mesmo bairro. "É triste, inaceitável, que essa revolução da longevidade não alcance todos da mesma forma", lamenta Kalache. No Japão, por exemplo, a expectativa de vida ao nascer das mulheres já é superior a 85 anos. Em Serra Leoa, é 34 anos, evidência de que a pobreza é fator determinante da longevidade.

Nos Estados Unidos, o percentual do tempo da vida adulta que as pessoas passam aposentadas saltou de 18% em 1950 para cerca de 30% hoje em dia e a tendência é de crescimento ainda por muito tempo. "No mundo, o número total de pessoas com mais de 80 anos passará dos atuais 88 milhões para 404 milhões no ano 2050. É o subgrupo da população que mais rapidamente aumentará neste 45 anos", diz Kalache. Daí a importância de se conscientizar toda a sociedade para essa nova realidade.

De olho nesses muitos vovôs e vovós, empresas já se reestruturam para atender a uma nova demanda, avalia Robert W. Fogel, Nobel de Economia em 1993 e pesquisador de questões ligadas à longevidade (ver pág.9). Para os idosos conectados, por exemplo, a Vodafone deu início à moda dos telefones básicos, distribuindo o celular A101K, da Kyocera, um aparelho sem visor, sem internet e sem nenhum daqueles brinquedinhos que encantam tanta gente, mas que podem deixar os idosos perdidos. Além de não ter tela, os números do aparelho celular são grandes, para quem já tem a visão debilitada. A indústria automobilística tem adaptado os ângulos das portas, aumenta a potência dos faróis e faz bancos mais macios, entre outros pormenores pensados para corpos mais cansados. O mesmo ocorre com o design de mobiliário e eletrodomésticos.

Estudo encomendado pela Unilever, com abrangência internacional, Brasil incluído, mostrou no ano passado que nove entre dez mulheres acima dos 50 anos acreditam estar melhor do que suas mães na mesma idade e 89% delas se consideram "muito novas para se sentirem velhas". Além disso, 91% opinaram que anúncios publicitários deveriam representar a realidade etária das consumidoras de forma mais realista. Outras grandes empresas de produtos de higiene pessoal e cosméticos têm dirigido esforços constantes de marketing para jovens senhoras.

A comunicação está entre as fronteiras mais polêmicas no trato do aumento da longevidade e do envelhecimento da população. Atualmente, muitos temem, por exemplo, que ao anunciar que um automóvel é perfeitamente adaptado para um idoso sejam perdidas mais vendas do carro para jovens do que conquistados clientes da terceira idade. No entanto, atentos ao potencial de consumo desses consumidores, vários setores econômicos abandonaram preconceitos antigos, frente ao potencial de retorno ao focar os mais idosos. Uma revista, com o sugestivo nome de "Elixir", e um programa de televisão em rede de grande audiência foram lançados na Europa para falar exclusivamente aos boomers. Sinal de que há empresas suficientemente interessadas em ajudar a sustentar com patrocínios e anúncios publicitários esses veículos nos países mais ricos.

A boa notícia para as pessoas em conseqüência disso, diz Kalache, da OMS, é que nunca foi tão bom envelhecer nos países mais desenvolvidos. "Há novidades da medicina, mais serviços e uma nova consciência da sociedade", avalia ele. Segundo dados apresentados por Kalache, estima-se que o aumento da expectativa de vida tenha adicionado cerca de US$ 70 trilhões à economia americana desde 1970. Um setor que vem sendo fortemente impactado por essa avalanche de consumo é o de refeições fora de casa. Na Europa, pessoas com mais de 50 anos comem fora entre 4 e 5 vezes por semana.

O bairro de Copacabana, um dos que mais concentra idosos no mundo todo, acabou se tornando inspiração para o projeto Cidades Amigas dos Idosos, da OMS, que começou no bairro carioca. O objetivo é reunir informações úteis para uso de pessoas de mais idade. Os primeiros resultados serão publicados em 1 de outubro, Dia Internacional dos Idosos. O guia das cidades amigas dos idosos será lançado simultanemente em Londres e em Genebra. O lançamento da versão em português está previsto para 8 de outubro.

Assim como governos e empresas estão atentos à questão do envelhecimento, pessoas se preocupam com sua sobrevivência no futuro. Olhando para os sistemas públicos de previdência, muitos já percebem que a corda poderá se romper do lado mais fraco, ou seja, poderá faltar dinheiro para financiar o futuro de uma multidão de aposentados. Pesquisa do HSBC com clientes do banco em todo o mundo revelou que, no ano passado, 43% dos entrevistados acreditavam que os indivíduos devem arcar com a maior parte dos custos financeiros de sua aposentadoria, enquanto apenas 30% pensam que essa responsabilidade cabe ao governo.

No Brasil, o relativamente novo mercado de previdência privada dispara em velocidade impressionante. Atualmente, é investida em planos privados uma quantia superior a R$ 110 bilhões, valor que não chegava a R$ 30 bilhões há quatro anos. "Os brasileiros já tomaram consciência de que o sistema público não conseguirá oferecer todas as necessidades que terão na aposentadoria", diz Renato Russo, vice-presidente de Previdência da SulAmérica

Por enquanto, o INSS é a principal fonte de renda dos brasileiros de mais idade. Pesquisa recente com mais de 3,7 mil pessoas, sendo dois terços de idosos, da Fundação Perseu Abramo (FPA), patrocinada pelo Sesc, revelou que 22% dos idosos com mais de 60 anos ainda fazem parte da População Economicamente Ativa (PEA). Gustavo Venturi, coordenador do levantamento, diz que a maioria dos idosos tem como principal fonte de renda a aposentadoria e ajudam financeiramente as famílias. Segundo a pesquisa, 91% dos idosos contribuem de alguma forma para a renda familiar, sendo a aposentadoria ou pensão a fonte de renda mais freqüente.

Como as fontes de renda da maior parte dos idosos são a aposentadoria ou a pensão, as famílias se apóiam na certeza da virtual infinitude desses recursos. "Ocorre que, por conta do elevado índice de emprego informal ou desemprego, a aposentadoria acaba sendo a única renda certa de muitas famílias", diz Venturi.

Como a longevidade aumenta e os aposentados vivem mais, os recursos para a aposentadoria deveriam vir cada vez mais de poupanças individuais, afirma Indermit Gill, consultor econômico do Banco Mundial, em texto publicado no site da instituição. Contudo, a própria América Latina, alvo principal do estudo que Gill realizou, já viu nas últimas duas décadas doze países levarem do Estado para a iniciativa privada a responsabilidade pela previdência, com sucesso bastante questionável. Na região - onde o sistema público já entrou em colapso antes de a população envelhecer de forma mais crítica -, as estratégias privadas não serviram para incluir mais pessoas na cobertura de sistemas de previdência. Eram caras demais para muitos, especialmente os mais pobres, a contribuição destinada a contas particulares e as taxas cobradas pelas instituições. Além disso, os custos de transição eram elevados e os planos não se mostraram blindados contra problemas macroeconômicos que ocorreram.

Seja a poupança para a aposentadoria pública ou privada, compulsória ou não, o cenário atual indica algumas tendências praticamente inevitáveis. Os trabalhadores terão de começar a poupar mais cedo e por mais tempo e deverão trabalhar também por mais tempo, até a aposentadoria. A pesquisa do HSBC aponta que, com a vulgarização do debate a respeito dos déficits da previdência, muitos já adquiriram essa consciência. Segundo o levantamento, quase dois terços dos entrevistados em 2006 declararam a opção ou capacidade do indivíduo como primeiro critério a se observar quando chega a hora de decidir sobre a aposentadoria, inclusive pela impossibilidade física de continuar a trabalhar.

A pesquisa da Fundação Perseu Abramo/Sesc vai na mesma direção. "A maioria não se considera idosa", diz Venturi. Vê-se a terceira idade como um conjunto de problemas que ainda não se percebe na própria vida. Segundo a pesquisa, as pessoas levaram o conceito de terceira idade para além dos 71 anos, 11 além do comum até pouco tempo atrás. "Os idosos têm muitos desejos e planos, como hobbies, lazer, trabalho, até mesmo o estudo, já que metade deles, no Brasil, são analfabetos funcionais", diz Venturi. Então, trabalhar por mais tempo pode ser simplesmente um meio de se manter fisicamente ativo e saudável, como mostrou a pesquisa do HSBC.


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