terça-feira, 3 de julho de 2007

Uma espanhola que liberta de escravos

Mario Osava, enviado especial
Publicado pela
IPS em 03/07/07

Foto de Mario Osava

A luta contra a escravidão ainda existe no Brasil, e um pequeno grupo assentado no município de Açailândia, na Amazônia oriental, dirigido por uma espanhola ganha batalhas em meio a fazendeiros que alegam ignorância.

O jovem com queimaduras nos pés, mãos infectadas e cheirando mal, chegou amparado por um companheiro. Havia sofrido um choque elétrico ao transportar uma vara metálica que atingiu um cabo de alta tensão na fazenda onde trabalhava. O tratamento médico o está recuperando, mas foi preciso amputar um dedo do seu pé.

Foi o “caso mais triste que atendi”, conta Brígida Rocha, de 22 anos e há dois anos encarregada dos primeiros atendimentos aos que chegam ao Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia (CDVDH), com apoio de dois advogados, uma estudante e uma assistente social. O ferido estivera vários dias sem o tratamento adequado, embora seu patrão seja um médico que agora enfrenta uma denúncia penal e outra trabalhista. Mas são as chegadas de surpresa de dezenas de trabalhadores fugindo da escravidão moderna, esfarrapados, famintos, olhar cabisbaixo, freqüentemente doentes e torturados, os casos que mais persistem na memória da espanhola Carmen Bascarán, presidente do CDVDH, fundado por ela há 11 anos.

Essa organização não-governamental recebe denúncias de trabalho escravo, que é sua missão central, bem como pedidos de emprego, de moradia e de assistência variada. “Querem que sejamos um substituto do Estado, com qual devemos fazer trabalhar melhor”, afirma Bascarán. O centro paga o preço de ter se convertido em ponto de referência para os pobres e oprimidos de uma extensa zona no extremo oriental da Amazônia, onde a violência rural está muito presente.

As denúncias recebidas são encaminhadas às autoridades trabalhistas, judiciais ou policiais, e têm como resultado milhares de trabalhadores libertados que estavam em condições semelhantes à escravidão. A sede tão concorrida é uma modesta casa doada que fica no final de uma rua de Açailândia, onde eternos esgotos a céu aberto denunciam a falta de saneamento. Na frente fica a quadra da Escola de Futebol Pé de Atleta, cujas atividades acabam de ser reiniciadas após interrupção de meses desde que um aluno assassinou um professor a facadas.

Escravos e pistoleiros
Açailândia, com 110 mil habitantes, fica a 566 quilômetros de São Luis, no Maranhão, e é conhecida como zona de recrutamento de trabalhadores escravos. Em seus numerosos “hotéis”, casas precariamente ampliadas para alojar recém-chegados perto de um terminal de ônibus, agem os “gatos”, como são conhecidos os recrutadores. Também se atribui a Açailândia ser ponto de concentração de pistoleiros contratados para executar os freqüentes assassinatos de líderes camponeses e seus defensores, advogados e missionários religiosos, em uma região compreendida por áreas de três Estados: Maranhão, Pará e Tocantins.

Mas já não é assim. A violência em Açailândia diminuiu, bem como a incidência do trabalho escravo, afirma Bascarán, a quem se deve a insólita existência de uma organização de direitos humanos em uma cidade com tais antecedentes, em lugar da capital, como é o habitual. Por outro lado, agora crescem as denúncias de superexploração, ou seja, abusos sem cativeiro, afirma Rocha, baseada em estatísticas próprias e de outras instituições. O vizinho Pará mantém a triste liderança em matéria de massacres de camponeses e escravidão. Ali o governamental Grupo Móvel de Inspeção libertou mais de um terço dos 21.777 trabalhadores resgatados desde 1995 até março deste ano em todo o Brasil, segundo dados do Ministério do Trabalho.

Mas é o Maranhão, por sua pobreza e desemprego, a principal origem dessas pessoas atraídas por promessas de trabalho em fazendas distantes e que depois são impedidas de deixá-las, o que caracteriza a escravidão. Falsas dívidas, acumuladas pela cobrança indevida de transporte, equipamentos de trabalho e compras a preços absurdos na loja do patrão, servem de pretexto para a retenção sob ameaças, muitas vezes com guardas armados. ‘Um coco custava R$ 60, e de um companheiro que matou um frango cobraram o dobro”, conta Gildásio Meireles, de 26 anos, que fugiu de uma fazenda onde trabalhou os cinco primeiros meses deste ano cortando árvores.

Alojado na sede do CDVDH, que também lhe conseguiu emprego em um restaurante, Meireles, antes de voltar a Pindaré, pretende ajudar a libertar os 15 trabalhadores que ficaram na fazenda, recuperar seus bens trabalhistas e juntar o dinheiro necessário para uma cirurgia que seu pai precisa fazer. A produção de carvão para a siderurgia e o desmatamento com finalidades agrícolas são as atividades que mais escravizam. O combate à escravidão começou em 1995, quando o governo reconheceu o problema e criou o Grupo Móvel, formado por inspetores e fiscais do Trabalho apoiados por policiais federais em operações feitas a partir de denúncias.

Suas inspeções são “eficazes, mas são feitas poucas vezes por ano”, e investigando “uma pequena parte das denúncias que apresentamos”, se queixa Bascarán. Além disso, deixam como resultado poucas condenações: dos fazendeiros denunciados no CDVDH apenas um foi preso, “e apenas por uma semana”, recorda.

Julgamento exemplar
Alguns processos se arrastam na Justiça, como o de Olindo Chaves dos Santos, em cuja fazenda um Grupo Móvel informou ter resgatado 151 trabalhadores mantidos sob coação e em condições humilhantes, em 2001. Em uma audiência com um juiz de Açailândia, presenciada pela IPS no dia 13 de junho, o fazendeiro atribuiu tudo a uma “armadilha”, sem identificar os interessados em prejudicá-lo e apesar de ter pago os direitos trabalhistas dos trabalhadores os quais não reconhecia como seus empregados.

Somente havia pedido ao recrutador oito trabalhadores que apenas começavam a limpar uma propriedade recém-adquirida, “pequena, de 800 hectares”, e que dispunha de boa casa com todos os recursos, mas inexplicavelmente, acamparam perto de uma lagoa cuja água foi suja pra acusá-lo de oferecer água contaminada, afirmou o fazendeiro. Dono de seis fazendas de gado, Chaves explicou que mudou para Açailândia em 1974 porque o preço de um hectare em seu Estado natal, Minas Gerais, equivalia a 500 hectares em sua nova terra. Afirmou à IPS “desconhecer a prática de trabalho escravo” na região.

Seu advogado, Joel Dantas, definiu com “um processo mais pedagógico do que judicial” a campanha contra a escravidão em uma região que começa a superar a ausência total do Estado. Fazendeiros como Chaves são “capinadores” que abriram caminho para o desenvolvimento local e estão aprendendo a respeitar direitos trabalhistas, afirmou. Os acusados sempre apresentam versões como a de Chaves, totalmente contraditórias com “os fatos comprovados pela inspeção”, afirma o promotor Marco Aurélio Fonseca. A pena por trabalho escravo é de quatro a oito anos de prisão.

"Essa espanhola"
Apesar das inimizades que sua atividade desperta, Bascarán não sofreu ameaças de morte, comuns nesta região, talvez por não atuar diretamente em conflitos pela posse de terras. Mas houve manifestações de xenofobia contra “essa espanhola que quer destruir o futuro de Açailândia”, natural de Oviedo, esta asturiana descobriu sua vocação na adolescência, ao ouvir uma compatriota que regressava da Suíça após três anos dormindo em portas do metrô e sem visitar a família, tudo para economizar o salário e construir uma casa na Espanha. “Ainda lembro de seu rosto em pranto”, afirma Bascarán. Lamentando que os espanhóis tenham esquecido tão rapidamente que eram os pobres imigrantes da Europa e tenham se convertido em intolerantes diante da imigração.

Aos 50 anos, quando seus quatro filhos já eram independentes e iam para outros países, ela se negou a viver a “síndrome do ninho vazio” para cumprir sua vocação “onde fosse mais necessário”. Deixou o trabalho de enfermeira na clínica de seu irmão e, como integrante da Associação de Laicos Combonianos, decidiu atuar em Açailândia, onde já vivia outro irmão que é padre. Ela justifica sua escolha afirmando que Açailândia é “um laboratório do mundo pobre”, pois concentra em um raio de cem quilômetros os efeitos do “capitalismo mais duro, escravidão, máfias, degradação ambiental e familiar” mas por outro lado, “é um povo desejando um mínimo de oportunidades para se levantar”.

As conquistas
Depois de um ano discutindo o que fazer com um grupo local, a opção foi “defender os direitos humanos com ênfase na vida, onde o desprezo pela vida é forte e persiste”. O CDVDH nasceu em novembro de 1996 e colecionou triunfos. O primeiro foi uma campanha que conseguiu a certidão de nascimento para mais de três mil moradores da cidade que não tinham esse documento básico, oferecendo-o gratuitamente aos pobres, antes que o governo adotasse essa mesma iniciativa no plano nacional.

Outra conquista é o Instituto Carvão Cidadão, criado em 2004 pelas 14 siderúrgicas da região para monitorar o cumprimento de leis trabalhistas na produção do carvão vegetal. O instituto já qualificou 312 fornecedores de mais de mil auditados, informa Ornedson Carneiro, seu presidente. “É um avanço”, mas essa indústria de fundição de ferro (principal matéria-prima do aço) ainda não assume toda sua responsabilidade, porque deveria ter como seus empregados, e não terceirizados, os que produzem o carvão, ressalta Bascarán.

O CDVDH foi decisivo na formalização, em 21 de junho, do Plano Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo no Maranhão, vinculado a um programa nacional vigente desde 2003. já organizou duas conferências sobre o tema em Açailândia com participantes de todo o País. A legalização, em 9 de junho, de uma rádio comunitária após nove anos de luta e freqüentes interrupções impostas pelas autoridades, e a criação da Cooperativa da Dignidade, que emprega apenas ex-escravos ou seus familiares na produção de carvão reciclado, com resíduos das siderurgias, e brinquedos com o restante da madeira, são outras conquistas celebradas.

Mas o Centro ainda tem energia para promover atividades culturais com grupos de dança, teatro e capoeira com mais de 600 jovens, alguns já profissionalizados como instrutores em núcleos organizados em cinco dos bairros mais pobres da cidade. É uma tarefa “de prevenção do trabalho escravo”, ao gerar renda novos horizontes para a juventude com o grande poder de mobilização da arte, afirma, entusiasmada, Bascarán, que sonha obter apoios para construir um centro cultural em Açailândia.


Nenhum comentário:



Acesse esta Agenda

Clicando no botão ao lado você pode se inscrever nesta Agenda e receber as novidades em seu email:
BlogBlogs.Com.Br