terça-feira, 28 de outubro de 2008

Alterações no Regime Jurídico dos Convênios nas Parcerias Público-Privada

Originalmente criado para realização de acordos internos da Administração, ante às novas necessidades do Estado o convênio revelou-se meio disponível no ordenamento jurídico brasileiro para formalizar a parceria entre o Poder Público e as entidades privadas sem fins lucrativos, principalmente no tocante às transferência voluntária de recursos públicos.

Tornou-se, com isso, importante meio de concretização da atividade de fomento, cuja relevância se acentuou após a Reforma do Estado e a expansão do Terceiro Setor.

No entanto, a ausência de legislação específica própria e devidamente consolidada resultou na utilização indevida deste instrumento para o cometimento de irregularidades ofensivas aos princípios da Administração Pública (art. 37, Constituição Federal).

No intuito de evitar este tipo de prática, a União Federal editou o Decreto n. 6.170, de 25 de julho de 2007, regulamentado pela Portaria n. 127, de 29 de maio de 2008, alterando de maneira sensível o regime jurídico dos convênios, promovendo a efetivação da transparência dos atos da Administração e, ainda que de maneira insatisfatória, do princípio constitucional da licitação. 

Cumpre, neste artigo, trazer breves comentários as principais modificações no regime dos convênios. 

Uma importante inovação trazida pelo Decreto n. 6.170/07 (art. 13) é a implementação do Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse (SICONV). Trata-se de plataforma eletrônica [i]  instituída em razão de determinação do Tribunal de Contas da União, que visa “[...]possibilitar a transparência que deve ser dada às ações públicas, como forma de viabilizar o controle social e a bem do princípio da publicidade insculpido no art. 37 da Constituição Federal de 1988 c/c o art. 5º, inciso XXXIII, da mesma Carta Magna [...] [ii].

O cadastramento no SICONV é obrigatório para a entidade celebrar convênio com a União, mediante apresentação dos documentos elecandos na Portaria n. 127 (art. 18), o que demonstra a preocupação do Poder Público com a regularidade e idoneidade da Administração com a gestora dos recursos públicos.

A finalidade da exigência supramencionada, dentre outras, é comprovar que a entidade não possui em seu quadro diretivo: i) membros dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União; ou ii) servidor público vinculado ao órgão ou entidade concedente, abrangendo os respectivos cônjuges, companheiros e parentes em linha reta, colateral ou por afinidade até 2º grau.

Ademais, os documentos apresentados servirão para conferência de que a entidade possui finalidades sociais (isto é, previstas em seu estatuto) pertinentes ao objeto do convênio, além de condições técnicas para execução do instrumento.

Aliás, acompanhando esta evolução, Lei n. 11.768/08 – LDO 2009 [iii], em seu art. 19, §1º, determina que “Os convênios, contratos de repasse ou termos de parceria, celebrados a partir de 1º de julho de 2008, deverão ser registrados, executados e acompanhados no SICONV”[iv]. (grifos nossos) 

Por fim, cabe salientar que este cadastramento, válido por 1 ano, trás benefícios não apenas à Administração Pública, como também às entidades convenentes, porquanto única apresentação dos documentos feita para fins de cadastramento, possibilita a celebração de mais de um convênios, representando uma economia procedimental para ambas as partes.

Outro ponto relevante trazido pela nova legislação é a observância parcial do princípio constitucional da licitação (art. 37, XXI, Constituição Federal) que tem por finalidade assegurar a melhor contratação (princípio da vantajosidade) e, simultaneamente, garantir a todos a oportunidade de contratar com a Administração (princípio da isonomia). 

A Portaria n. 127 (arts. 4º, caput e 5º, caput) inovou na seara dos convênios ao prever a possibilidade de procedimento formal de seleção da entidade privada partícipe. [v]

Com este processo, é facultado ao concedente fixar critérios objetivos para selecionar projetos ou entidades que melhor contribuam para o objeto do convênio, voltados a medir a qualificação técnica e capacidade operacional do particular para gerir o convênio.

Ressalte-se que o chamamento público de que trata o art. 5º, caput, Portaria n. 127 é ato discricionário. Contudo, o Tribunal de Contas União, em recente decisão, recomendou ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão a avaliação da oportunidade e a conveniência de [...] orientar os órgãos e entidades da Administração Pública para que editem normativos próprios visando estabelecer a obrigatoriedade de instituir processo de chamamento e seleção públicos previamente à celebração de convênios com entidades privadas sem fins lucrativos, em todas as situações em que se apresentar viável e adequado à natureza dos programas a serem descentralizados[...]” [vi]

Assiste razão à Corte de Contas, pois os dispositivos em referência não atenderam de maneira satisfatória o mandamento constitucional da licitação. A realização de seleção é regra em nosso ordenamento, admitindo-se em caráter excepcional seu afastamento nas hipóteses previstas em lei. Dessa maneira, o processo de seleção das entidades convenentes deveria ser regra, não aplicável somente nos casos expressamente determinados na lei. 

A utilização de recursos públicos por entidade privada tem sido objeto de constantes preocupações da Administração Pública, especialmente no que toca ao seu controle. Não por outra razão, a União Federal editou, seguindo a linha da Instrução Normativa n. 01/97, da Secretaria do Tesouro Nacional (art. 27), o Decreto n. 5.504/05, que impõe a obrigação de licitar às entidades beneficiadas com recursos públicos na União, transferidos por meio de convênio, termo de parceria e contrato de gestão. 

A sujeição total das entidades ao regime de direito público acabou por prejudicar suas atividades, pois a natureza privada das convenentes é incompatível excesso de rigorismo imposto. Ao analisar o assunto, Marçal Justen Filho comenta que “[...] a União está impondo um modelo potencialmente inadequado para o desempenho das atividades não estatais. A riqueza da atuação das entidades não governamentais tem íntima relação com a ausência de obrigatoriedade de cumprimento de toda e qualquer formalidade inerente ao procedimento administrativo”. [vii]

Ainda que não conste expressamente, o Decreto n. 6.170/07 revogou o Decreto n. 5.504/05, pois deu novo tratamento à matéria, ao prever que: 


Art. 11. Para efeito do disposto no art. 116 da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, a aquisição de produtos e a contratação de serviços com recursos da União transferidos a entidades privadas sem fins lucrativos deverão observar os princípios da impessoalidade, moralidade e economicidade, sendo necessária, no mínimo, a realização de cotação prévia de preços no mercado antes da celebração do contrato.

Note-se que, atenta a esta alteração, a Lei n. 11.768/08 – LDO 2009 (art. 40, §4º) passou a exigir como condição para recebimento de recursos [...]a adoção, por parte do convenente, dos procedimentos definidos pela União relativos à aquisição de bens e à contratação de serviços...”,  deixando de mencionar o vocábulo “licitação”, previsto anteriormente na Lei n. 11.514/07 – LDO 2008, o que rechaça, pois, a possibilidade de aplicação do Decreto n. 5.504/05.

Ainda que este procedimento não esteja regulamentado [viii], é possível ter uma noção geral de como se dará a cotação prévia no SICONV. Nos termos da Portaria n. 127 (art. 45 e ss.), em regra, as contratações serão precedidas de convocação de cotação, que deverá conter, dentre outros elementos, a descrição do objeto da contratação, conforme descrição do Plano de Trabalho, e critério de seleção das propostas, priorizando-se o menor preço. 

Dessa forma, com base nos critérios estabelecidos, a convenente selecionará a proposta que se revelar mais vantajosa.

A não realização da cotação somente ocorrerá quando, observado o disposto no art. 46, §1º, Portaria n. 127/08, o valor da contratação for inferior a R$ 8.000,00 ou em razão da natureza da contratação, não houver pluralidade de opções – isto é, inviabilidade de competição. Na hipótese de não acudirem interessado na convocação, a convenente não estará autorizada a contratar diretamente, devendo promover, ao menos, três cotações prévias no mercado.

Fica claro que o novo meio de contratação com recursos públicos teve como norte a conjugação dos princípios da eficiência e impessoalidade, pois o formalismo desnecessário do regime publicístico aplicado às entidades parceiras foi suprimido por procedimentos mínimos que visam assegurar a contratação mais vantajosa e a ampla oportunidade de participação a fornecedores.

No tocante a previsão da contrapartida – contribuição da entidade convenente para execução do convênio –, é mantida tal como no regime anterior (art. 7º, Decreto n. 6.170/07), e seu valor calculado de acordo com os limites estabelecidos na LDO. Aliás, a nova legislação, reproduzindo o usualmente contido em LDO, expressamente prevê que a contrapartida deve se dar por meio de recursos financeiros, bens e serviços economicamente mensuráveis. 

Como observa Natasha Schmitt Caccia Salinas [ix], a possibilidade de oferecer como contrapartida bens e serviços é um fator que só vem a contribuir para as entidades do Terceiro Setor, uma vez que permitem que estas não disponham de seus recursos financeiros, comumente escassos.

Vale lembrar que, quando a contrapartida se der por meio de recurso financeiro, este deverá ser depositado na conta específica, conforme o cronograma de desembolso.

Dada a natureza pública do recurso repassado, remanesce a obrigação de prestar contas, instruída pelos documentos e informações já apresentados no SICONV e demais documentos previstos no art. 58 da Portaria n.127, ao final da vigência do convênio (art. 56, caput, Portaria n. 127). Aliás, todos atos relativos a prestação de contas, inclusive sua aprovação ou reprovação, serão registrados e publicados do SICONV.

A entidade que não apresentar a prestação de contas terá sua inadimplência cadastrada no sistema pelo concedente e estará sujeita a medidas para reparação do dano ao erário, além de, por estar constituída em mora ou inadimplente, ficar também impossibilitada de receber novos repasses.

De maneira geral, as prescrições decorrentes destas novas normas (cumprimento de requisitos mínimos por parte da entidade; contratação com recursos por meio do SICONV) procuram estabelecer uma maior grau de transparência e controle da celebração de convênios e gestão dos recursos repassado.

Concomitantemente, esta elevação do rigor com relação às atividades das entidades convenentes respeitou as peculiaridades que lhes são intrínsecas, assegurando requisitos mínimos de flexibilidade para uma atuação eficiente

Por todo o exposto, é possível afirmar que esta nova disciplina dos convênios traduz-se em importante passo na consolidação deste instrumento como meio um apropriado de formalização da parceria entre os setores público e privado.

[I] www.convenios.gov.br/siconv

[ii] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão n. 2066/2006. Plenário. Relator: Min. Rel. Marcos Bemquerer Costa. Disponível em:
. Acesso em: 05 set. 2008.

[iii] LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias)

[iv] As menções esparsas e pouco clara do termo de parceria na Portaria n. 127/08 (Cf. art.1º, §1º, XIX; art.27, caput; art. 73) não permitem concluir por sua total aplicação ao termo de parceria. Entretanto, em razão da expressa previsão da Lei n. 11.768/08, as OSCIP deverão observar determinadas disposições da Portaria n. 127/08 (desde que não conflitantes com Lei n. 9.790/99 e Decreto n. 3.100), quando pretenderem firmar termo de parceria cujo o objeto é o repasse de verbas da União Federal. 

[v] No mesmo sentido, o art. 23, Decreto n. 3.100/99, prevê a possibilidade de realização de concursos para seleção da OSCIP parceira. 

[vi] TCU, Acórdão nº 1331/2008, Rel. Min. Benjamim Zymler, p. em 11/07/2008. Neste sentido, o Tribunal de Contas da União já recomendou à Secretaria do Tesouro Nacional que discipline a seleção de convenentes, regulando a obrigatoriedade de estabelecer “critérios objetivamente aferíveis e transparentes para escolha das entidades privadas que receberão recursos por meio de convênios e outros instrumentos jurídicos utilizados para transferir recursos federais” obrigatoriedade de estabelecer (BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão n. 2066/2006. Plenário. Relator: Min. Rel. Marcos Bemquerer Costa. Disponível em:
. Acesso em: 05 set. 2008) 

[vii] Comentários à lei de licitações e contratos administrativo. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008, p. 41. 

[viii] Cf. art. 70, Portaria n. 127/08

[ix] SALINAS, Natasha Schmitt Caccia. 2008. 255 f. Avaliação legislativa no Brasil: um estudo de caso sobre as normas de controle das transferências voluntárias e recursos públicos para entidade do terceiro setor. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. p. 128.


Erika Kishita Fukuda e João Gabriel Gomes Pereira
Estagiária do escritório Cesnik, Quintino e Salinas Advogados (www.cqs.adv.br), especializado em cultura e terceiro setor; graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Email: erika@cqs.adv.br.
Estagiário na área de Direito Público do escritório Cesnik, Quintino & Salinas Advogados Graduando em Direito (5º Ano) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ex-aluno da Escola de Formação - Sociedade Brasileira de Direito Público.
Revista Eletrônica Integração - Edição nº 89 - Outubro de 2008


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