segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Marcelinas gerem saúde de R$ 403 milhões

César Felício
Publicado pelo
Valor Online em 18/02/08

Rosane Ghedin: paranaense de 37 anos, formada pela FGV, comanda grupo de 35 irmãs que tem carta branca no governo Serra e respeito dos petistas
Foto Davilym Dourado / Valor


O orçamento sob seu controle é superior ao de 4.758 municípios no país. Por seus domínios já passaram todos os presidentes eleitos desde a redemocratização. Têm franco acesso ao gabinete do governador de São Paulo, José Serra (PSDB), e percorrem, com seu hábito branco, os gabinetes ministeriais e financeiros para manter um complexo que inclui quatro hospitais, 16 ambulatórios de assistência médica e 58 unidades do Programa de Saúde da Família.

São 35 as irmãs da Congregação Marcelina que administram uma soma anual de R$ 403,6 milhões de recursos públicos na área da Saúde. É dinheiro da União, por meio do SUS, do Estado e do município de São Paulo. Dos quatro hospitais, três são organizações sociais (OS) e geridos de maneira independente do Hospital próprio - o modelo têm algum parentesco com o modelo de fundação pública de Saúde proposto pelo ministro José Gomes Temporão. São veneradas pelos tucanos paulistas e respeitadas pelos petistas.

Paranaense de 37 anos e consagrada freira há 17, a irmã Rosane Ghedin comanda a organização desde 2005. Como instituição filantrópica, a Congregação praticamente não conta com receita própria. Nos primeiros anos de seu mandato como administradora do complexo, irmã Rosane percorreu gabinetes em busca de ajuda para reestruturar financeiramente o Hospital Santa Marcelina, que chegou a acumular uma dívida de R$ 57 milhões em 2005.

Irmã Rosane teve a ajuda do então cardeal de São Paulo, dom Claudio Hummes, para ser recebida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O contato com petistas amigos foi usado para conseguir uma audiência com o então presidente do BNDES, Guido Mantega, na tentativa de, sem sucesso, refinanciar uma linha de crédito de R$ 10 milhões com o banco estatal. Com os tucanos José Serra e Geraldo Alckmin - atual e ex-governador de São Paulo, respectivamente -, o contato sempre foi fácil e a irmã contou com subvenções.

Com o saneamento da instituição encaminhado - hoje, a dívida é de apenas R$ 8,8 milhões - as irmãs ampliaram a sua atuação e foram batalhar por recursos no Orçamento da União. O rol dos deputados amigos da Congregação na hora da apresentação de emendas é eclético: vai do PTB de Ricardo Izar e Arnaldo Faria de Sá ao PSDB de Vanderlei Macris e o PT de Paulo Teixeira, na Câmara. Na Assembléia Legislativa, conta com a boa vontade, entre outros, dos petistas Simão Pedro e Adriano Diogo. Foi graças a uma emenda do último, por exemplo, que as irmãs puderam pagar o décimo-terceiro salário de seus funcionários.

O ecletismo das relações políticas das Marcelinas não esconde, contudo, um entrosamento maior das freiras com o PSDB. "A aproximação delas com Serra e Alckmin é umbilical. Temos consciência disso. Mas as irmãs merecem ajuda pela maneira que tentam ampliar os critérios de atendimento do SUS. Sempre brigaram para ampliar os níveis de cobertura pública. Agora o prestígio delas é usado pelo governo tucano para blindar o modelo de organizações sociais, que é questionável", afirma Diogo.

Está no gigantismo da estrutura das irmãs Marcelinas parte do lastro que garante o trânsito político às religiosas. Fundado em 1961, o hospital Santa Marcelina, com 750 leitos, é a única porta de entrada para o atendimento médico entre os cerca de 200 mil moradores do bairro de Itaquera. Faz, por ano, 900 mil atendimentos de pronto-socorro, internações e consultas. Nada menos que 86% são feitos pelo SUS. "É o verdadeiro Hospital das Clínicas da Zona Leste", comenta o deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), autor de uma emenda no Orçamento da União que destina R$ 1 milhão para a manutenção da entidade. "Há três outras grandes entidades filantrópicas de Saúde na cidade: Santa Casa de Misericórdia, Hospital Santa Catarina e Hospital São Paulo. Mas a única que está em uma região carente é o hospital das Marcelinas", explica.

O entrelaçamento entre o trabalho religioso e a política parece ser uma vocação das irmãs. Santa Marcelina, a inspiradora da ordem, uma romana que viveu no século IV, era filha do governador da Gália e irmã de dois prefeitos de Milão. Em sua vida virtuosa, cuidou da educação dos irmãos Ambrósio e Sátiro e os auxiliou na administração pública.

Nos anos 80, entusiasmado com o modelo cubano de assistência domiciliar, o então governador Orestes Quércia (PMDB) negociou com as irmãs a implantação na Zona Leste de 17 equipes do que viria no futuro a se transformar no programa Saúde da Família.

A experiência chamou a atenção do mundo político. Em 1989, Fernando Collor visitou o Santa Marcelina poucos meses antes de ser eleito e deixou-se fotografar ajoelhado, rezando junto às madres. No ano seguinte, mandou o então ministro da Saúde, Alceni Guerra, tratar de subvenções. A ligação com o mundo tucano começou em 1995, quando, no afã de cortar despesas para ajustar financeiramente o Estado, o governador Mário Covas teve a idéia de acabar com o programa de assistência desenvolvido pelas irmãs sob a égide do quercismo.

Depois da mobilização das freiras e da decisiva atuação do então ministro da Saúde, Adib Jatene, o governador não só manteve o programa como ampliou sua escala: o embrião nascido no governo Quércia transformou-se no Projeto Qualis: na prática, o governo estadual assumia a atenção básica à Saúde em São Paulo, com recursos federais, tendo nas irmãs Marcelinas um dos braços operadores. O lançamento do programa foi feito pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, em visita ao hospital.

Nos anos 90, São Paulo havia ficado excluída do SUS, já que os prefeitos Paulo Maluf e Celso Pitta investiram em um programa paralelo, o PAS, uma espécie de modelo de auto-gestão dos estabelecimentos de Saúde que resultou em fracasso completo. Hoje, sob o formato de Programa Saúde da Família, as Marcelinas administram 58 unidades, recebendo R$ 68 milhões de recursos públicos.

Do Qualis, Covas convidou as irmãs para uma parceria em uma empreitada até então inédita: a administração de um hospital público, dentro do recém-criado modelo de organização social. O Hospital do Itaim Paulista, em 1998, fez parte da primeira leva de estabelecimentos estaduais geridos por organizações sociais. Até hoje, o estabelecimento é gerido pelas irmãs, que recebem R$ 59 milhões por ano do governo estadual para mantê-lo. Em 1999, Covas deu para administração das irmãs outro hospital, o de Itaquaquecetuba, que hoje consome R$ 49 milhões anuais. O pioneirismo foi estendido para o âmbito municipal. Ao criar o modelo paulistano de organização social, no fim de seu governo de 14 meses como prefeito de São Paulo, José Serra encarregou as Marcelinas de tocarem o Hospital Cidade Tiradentes, que deve consumir recursos de R$ 69 milhões em seu primeiro ano de funcionamento.

A ascensão de Alckmin ao governo de São Paulo, em 2001, e de Lula ao governo federal, em 2003, coincidiu com a crise da entidade, que a levou a cortar serviços essenciais como a fisioterapia e a psiquiatria do hospital de Itaquera. A defasagem da tabela do SUS até hoje é apontada como a vilã da crise.

Irmã Rosane nega, com veemência, qualquer trânsito entre o dinheiro público destinado às organizações sociais e a manutenção do hospital de Itaquera. "Não há vasos comunicantes. Jamais a matriz recebeu benefícios financeiros por assumir a administração de outros hospitais", diz a religiosa.

Foi sob a gestão da irmã Tereza Lorenzzoni, que antecedeu irmã Rosane, que a Congregação começou a negociar com os parceiros públicos e privados o equacionamento da dívida. Conseguiu com o então ministro da Saúde, Humberto Costa, o aumento do repasse dos recursos do SUS, mas, o fundo do poço chegou no começo de 2005, quando os médicos da instituição que atendiam o programa Saúde da Família entraram em greve por falta de pagamento.

"Aquilo foi um problema do governo Marta, que não era voltado para a Saúde. O governo municipal fechou o caixa antes de efetuar o último pagamento devido e nós tivemos um vácuo em janeiro de 2005, na transição de um governo para o outro", comenta irmã Rosane. Técnicos ligados à administração da ex-prefeita petista e hoje ministra do Turismo, Marta Suplicy, sustentam que o pagamento do convênio com as irmãs Marcelinas foi feito regularmente.

Semanas depois do pico da crise, em março de 2005, irmã Tereza foi substituída por Rosane Ghedin, formada em administração hospitalar pela Fundação Getúlio Vargas. A direção do hospital nega que a troca ocorreu por pressão de credores e argumenta que a prova é que a antiga administradora ainda hoje responde pela direção financeira da organização.

As freiras não entram em detalhes sobre a renegociação financeira. Lacônica, irmã Rosane só afasta a hipótese de suas ligações políticas terem facilitado no diálogo com os bancos. "Negociar com os bancos privados foi muito mais fácil do que com os bancos públicos. Os juros que a Nossa Caixa cobra não são negativos", diz, referindo-se ao banco estadual.

Irmã Rosane admite que a decisão no ano passado do governador José Serra de assumir a manutenção do ambulatório de especialidades representou um alívio mensal de R$ 1 milhão. E que a rede de AMAs, uma espécie de posto de saúde criado pela gestão municipal tucana para ser a marca da administração Serra/Kassab desafogou o setor de pronto socorro do hospital sede. As Marcelinas administram 15 AMAS por convênio e outras três como organizações sociais, recebendo R$ 29 milhões por ano.

As Irmãs Marcelinas estão em dia com seus credores, mas o saneamento não terminou. "Continuamos com um déficit de R$ 2 milhões mensais. Precisamos sempre recorrer a verbas adicionais", afirma a irmã. O repasse da União para o Hospital Santa Marcelina é da ordem de R$ 132 milhões anuais.


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