sábado, 28 de julho de 2007

“É necessário voltar os olhos para o cidadão. As ONGs não podem seguir a lógica das empresas”

Eliane Iensen
Publicado no site da Secretaria de Justiça e Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul


Entrevista com Augusto de Franco (foto)

Considerado um dos maiores especialistas em desenvolvimento local e inclusão social, Augusto de Franco busca de forma constante superar antigos paradigmas. Ex-coordenador-geral da Agência de Educação para o Desenvolvimento (2001-2005), atualmente está com o projeto chamado Nan Daí, uma rede de desenvolvedores independentes que trabalham com o ‘Triângulo da Sustentabilidade’: Desenvolvimento- Redes Sociais- Democracia. Entre 1995 e 2002, foi coordenador executivo do Conselho da Comunidade Solidária, onde foi o responsável pelas Rodadas de Interlocução Política que geraram, por exdentre outros resultados: a chamada Nova Lei do Terceiro Setor (Lei 9790/99, que criou as Oscips); a estratégia de indução ao Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável (Programa Comunidade Ativa); e o início do processo de regulamentação da atividade microfinanceira no Brasil.

Autor de mais de 12 livros, Augusto de Franco é também um crítico contumaz. Defende que a formação de redes não pode ser apenas instrumento para reivindicação ou um meio de ‘pendurar’ ao Estado demandas das comunidades. “Elas devem detectar as necessidades, identificar os ativos que existem e alavancar recursos novos”, sintetiza. Entende que o terceiro setor não deve seguir nem a lógica das empresas nem do Estado, mas tem de ser capaz de articular redes de pessoas em vez de erigir estruturas burocráticas. Segundo ele, esse também é o caminho para o desenvolvimento social. A seguir, a síntese da entrevista.

Imprensa SJDS - A formação de redes, envolvendo governos, setor privado e organizações sociais, vem se constituindo em alternativa para a execução de demandas apresentadas pelas comunidades? A participação de comunidades, organizadas em territórios, é fundamental para que haja execução de políticas públicas com qualidade?


Augusto de Franco - A formação de redes representa sempre um avanço em relação às formas tradicionais de organização burocrática e piramidal. Redes envolvendo os três setores: Estado, mercado e sociedade civil são importantes porque conseguem, por meio da parceria, extrair sinergias da combinação dessas três formas de agenciamento. No entanto, essas redes não devem ser olhadas, nem apenas, nem principalmente, como forma de apresentar demandas das sociedades aos governos, mas como formas de enfrentar problemas e aproveitar oportunidades (inclusive por meio da parceria com governos). As redes não podem ser instrumentos para reivindicação nem ser usadas como modos de pendurar ao Estado as diversas demandas dos setores sociais. Elas devem detectar as necessidades, identificar os ativos que existem e alavancar recursos novos. A vantagem das parcerias intersetoriais – operacionalizadas em rede – é, precisamente, aportar novos pontos de vista, incorporar iniciativas inéditas, novos modos de fazer e, inclusive, assumir novas responsabilidades na execução do que precisa ser feito para promover o desenvolvimento social (e não apenas ficar discutindo o que “terceiros”, via de regra o Estado ou o governo, devem fazer). É preciso ver que a participação das comunidades é fundamental para a execução de políticas públicas com qualidade. Não se pode entender por políticas públicas apenas as políticas governamentais. Políticas feitas por comunidades em prol do seu desenvolvimento são políticas públicas, embora nem sempre sejam governamentais stricto sensu. Além disso, o fundamental em uma política é que ela promova o desenvolvimento e não o fato de ela ser tomada nominalmente como política pública. Boa parte das políticas governamentais, embora assim se considere, não são públicas coisa nenhuma, ou seja, não há qualquer publicização na sua elaboração, na sua execução, no seu monitoramento, na sua avaliação e na sua fiscalização, em suma, na sua gestão. A gestão das políticas públicas governamentais ainda está longe de ser pública. Em geral, elas são concebidas e realizadas por burocracias que não acham que seja possível e necessário incorporar outros atores no processo. Não é por acaso que, não raro, as tais políticas públicas governamentais são promovidas por único ator, desperdiçando as energias e os recursos latentes nas comunidades. E não é por acaso que, nessas políticas, ainda se empreguem expressões como “público-alvo” e “beneficiários”, em vez de participantes, o que denota que o “povo”, os “pobres” ou as “populações carentes” às quais se destinam são encarados como objetos e não como sujeitos das ações. Políticas concebidas dessa maneira podem até ser chamadas de políticas públicas, mas concorrem para transformar as populações em beneficiárias passivas e permanentes de programas que vêem do alto. Do ponto de vista do desenvolvimento humano e social sustentável é mais importante que uma política seja democratizante, incorporando e valorizando a participação dos cidadãos, do que ser autonomeada política pública. Há um mito e muito blá-blá-blá em torno da noção precaríssima de “política pública”. Redes propriamente ditas devem ser redes de pessoas, P2P ou peer to peer. Isso não significa que não devamos fazer redes de instituições para aproveitar as sinergias. Mas significa que os fenômenos inéditos que podem acontecer em redes distribuídas não acontecerão nas redes descentralizadas de organizações hierárquicas que articulamos setorialmente sob o guarda-chuva genérico da palavra rede (que está na moda).

Imprensa SJDS - Nas últimas décadas, ocorreram mudanças intensas nas organizações do terceiro setor. Hoje, fala-se em planejamento estratégico, objetivos, metas e resultados. Esses conceitos de gestão, somado ao fato de as ONGs contarem com profissionais qualificados, contribuem para sua profissionalização? Qual a sua avaliação sobre o terceiro setor no Brasil?

Augusto - Minha avaliação já foi mais otimista do que é hoje. E posso falar com tranqüilidade porquanto sou um participante do chamado terceiro setor há quase 30 anos (desde 1979). O terceiro setor está diante de um desafio: ou consegue superar a sua forma de organização predominante (a nova burocracia associacionista que constituiu) ou não vai mais poder cumprir um papel inovador. É forçoso reconhecer que as organizações da sociedade civil, em sua imensa maioria, ainda se estruturam como mainframes e não como networks. Quando se denominam redes, quase sempre, isso é feito de forma indevida. É aplicada a estruturas verticais de poder, com baixíssimo grau de rotatividade nas suas direções e uma burocracia que, a despeito de ser reduzida pela falta de recursos, não deixa de ser formalmente semelhante a qualquer outra burocracia baseada na opacidade dos procedimentos e na verticalidade do fluxo comando-execução. Também é forçoso reconhecer que o paradigma organizativo dessas entidades ainda é aquele, digamos, das fronteiras fechadas. Essa conversa de que as ONGs vão se profissionalizar acaba enfraquecendo a sociedade civil. As organizações do terceiro setor não têm de imitar as empresas (e muito menos os governos) e sim afirmar a sua identidade própria de organizações da sociedade civil, presididas por uma lógica e uma racionalidade diferente daquela que rege o mercado (e da que rege o Estado). Se não se reciclar, a ‘nova burocracia associacionista das ONGs’ virará, em breve uma força francamente regressiva em termos da democratização da democracia e do desenvolvimento humano e social sustentável. Em geral me perguntam: então o que podemos fazer, nós que priorizamos a atuação na sociedade civil, no terceiro setor – para dar nossa contribuição à democracia e ao desenvolvimento? Minha resposta tem sido sempre a seguinte: articulem redes de pessoas em vez de erigir estruturas burocráticas. Não façam igrejinhas. Não construam castelinhos. Não tentem privatizar o capital social do seu entorno ou do seu setor. Capital social é um bem público: quando privatizado, estraga. E pode dar origem a certas formas perversas de sociabilidade. Sobretudo, não tentem jogar usando como cacife às relações alheias, negociando a partir da apropriação da vida social das comunidades, organizando, por exemplo, um “curral de pobres” para conseguir uma verba governamental, para atuar como terceirizada na implantação de uma política de assistência social. É necessário voltar os olhos para o cidadão, desorganizado do ponto de vista tradicional, mas muito conectado, que está emergindo neste dealbar do século 21. É incrível como, quando se fala de sociedade civil, esquece-se de que ela é composta por cidadãos. Fala-se ainda de “sociedade civil organizada” como se isso fosse grande coisa diante de milhões de pessoas que podem opinar e participar, não arrebanhadas ou acarreadas por organizações hierárquicas, mas diretamente, personalizadamente.

Imprensa SJDS - Como promover o desenvolvimento humano e social sustentável num país em que ainda predominam os cenários de desigualdades e casos de corrupção?

Augusto - Os cenários de desigualdades – não apenas de renda, mas também de riqueza, de conhecimento e de poder – são o motivo pelo qual se torna necessário promover o desenvolvimento humano e social sustentável. Já os casos de corrupção, sobretudo de corrupção política e de ‘corrupção de Estado’ (como estamos assistindo no Brasil a partir de 2003), esses sim, constituem obstáculos gravíssimos à promoção do desenvolvimento. Não há fórmula para enfrentar isso. É preciso que cada qual assuma, para além da sua responsabilidade social, a sua responsabilidade política (e essa é uma conversa que só agora começa a surgir, por exemplo, no seio do empresariado). Nas organizações da sociedade civil, porém, temos um problema: grande parte delas está politizada e partidarizada e, assim, não quer ver o problema. Quem duvidar dessa avaliação que faça uma pesquisa sobre como votaram os dirigentes das organizações da sociedade civil mais conhecidas nacionalmente nas oito últimas eleições (considerando primeiro e segundo turnos dos pleitos presidenciais de 1989 a 2006) e comprovará por si mesmo se é verdade ou não o que estou afirmando.

Imprensa SJDS - Que meios podem ser usados para estimular a participação da sociedade civil em ações que visem ao desenvolvimento da sociedade?

Augusto - Creio que o melhor meio é a promoção do desenvolvimento local (como se sabe, todo desenvolvimento é social e local) de um ponto de vista sistêmico, ou seja, investindo em capital humano (capacidades permanentes) e em capital social. Capital social é um recurso para o desenvolvimento aventado recentemente para explicar por que certos conjuntos humanos conseguem criar ambientes favoráveis à boa governança, à prosperidade econômica e à expansão de uma cultura cívica capaz de melhorar as suas condições de convivência social.

Imprensa SJDS - O senhor fez parte atuante do comitê responsável pela elaboração da Nova Lei do Terceiro Setor (9.790/99), que criou as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips). Que avaliação o senhor faz da implementação dessa lei no atual contexto? Ela tem sido satisfatória? O que pode ser aperfeiçoado?

Augusto - Quando coordenei esse processo, entre 1996 e 2002 (a lei das Oscips foi aprovada em 1999), não pensava exatamente como penso hoje, sete anos depois. Creio que as Oscips tiveram uma grande expansão (o que pode ser um bom sinal, sobretudo se considerarmos que várias delas são dedicadas à promoção do desenvolvimento). No entanto, a nova lei enfrentou a resistência feroz, por um lado, dos estatistas (que achavam se tratar de um expediente neoliberal para enfraquecer o Estado) e, por outro lado, do mundo jurídico tradicional (abrigado nos nichos de uma velha cultura jurídica, também estatista, que remanescem dentro do Estado, em especial nas assessorias, procuradorias e outros departamentos jurídicos de órgãos governamentais). É claro que já sabíamos, quando propusemos a lei, que ela não seria suficiente, representando apenas um pequeno primeiro passo da necessária reforma do marco legal do terceiro setor. Infelizmente, depois de 2002, esse processo de reforma foi abortado. Hoje penso que precisaríamos de outros dispositivos legais e infralegais que ensejassem e estimulassem a participação dos cidadãos como tais, sem necessidade de serem adotados por alguma estrutura organizativa tradicional.

Imprensa SJDS - A Secretaria da Justiça e do Desenvolvimento Social está desenvolvendo o projeto Rede Parceria Social. Qual sua avaliação sobre essa iniciativa?

Augusto - Creio que está no bom caminho. E espero que a secretaria continue nesse caminho, inclusive quando se der conta de que, para além de promover arranjos de instituições, será necessário conectar pessoas-com-pessoas para a promoção do desenvolvimento social de comunidades e setores. E será necessário adotar uma postura corajosa de defesa da promoção do desenvolvimento social que ultrapassa as ações setoriais voltadas à assistência social. Isso significará ter de enfrentar uma cultura muito disseminada na chamada “área social”. Porque quando falam em ‘social’ as pessoas, em geral, ainda querem se referir àquelas condições que permitem a satisfação de necessidades humanas. Não é por acaso que as chamadas políticas sociais, sobretudo para os governos, são aquelas que ofertam produtos (ações, programas e serviços) de educação, saúde. Ou seja, componentes do capital humano (ou do desenvolvimento humano) e não do capital social (ou do desenvolvimento social). Há, ainda, um sentido mais restrito – quase pejorativo – do termo social: aquele que se pega emprestado para designar políticas de combate à pobreza ou à desigualdade, sejam políticas de geração de emprego e renda (tomando a pobreza como insuficiência de renda e a desigualdade como desigualdade econômica, quer dizer, verificada na distribuição desigual da renda), sejam políticas ditas de assistência social. Não se pode negar que aqui se encontram aqueles elementos do “pobrismo” – um tipo de ideologia que contaminou os discursos de inclusão social dos que defendem o protagonismo único ou preponderante do Estado na promoção do desenvolvimento social. Isso precisa ser enfrentado.


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