quarta-feira, 6 de junho de 2007

Corte de verba muda a vida dos xikrin

Raquel Balarin
Publicado no Valor Online em 06/06/07


Uma das primeiras palavras que se aprende na língua Jê falada pelos índios xikrin é "piokaprin" ou "folhas pálidas". Significa dinheiro. É a resposta que muitas índias dão quando se pede para tirar uma fotografia (mekaron). Os fornecedores já chegam às associações dos xikrin em Marabá (PA) dizendo que querem tratar de "piokaprin". E até Raimundo de Oliveira, conhecido como Ivan, chefe do posto de vigilância da Funai na aldeia Djudjêkô, que fica na Terra Indígena Xikrin do Cateté, brinca com os índios que quer "piokaprin" quando arruma uma instalação elétrica que não funcionava ou quando entrega uma lima para afiar faca. Como resposta, invariavelmente, ouve uma sonora gargalhada.

Dinheiro tornou-se um assunto essencial na vida dos xikrin, comunidade que vive próxima a quatro grandes projetos da Companhia Vale do Rio Doce: Carajás (minério de ferro), Onça Puma (níquel, que começa a operar no próximo ano), Salobo e Sossego (cobre). Até o ano passado, a Vale repassava anualmente cerca de R$ 9 milhões aos cerca de 910 índios que vivem nas duas aldeias da terra indígena. Mas uma invasão a Carajás em outubro do ano passado levou a companhia a suspender os repasses.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Ministério Público entraram com uma ação na Justiça Federal e uma liminar restabeleceu os pagamentos. Problema resolvido? Não. Os depósitos são feitos em juízo e os recursos só são liberados depois de uma análise dos gastos. O processo está provocando uma revolução entre os xikrin e na sua relação com a Vale.

O primeiro reflexo pode ser sentido já em Marabá. Os comerciantes, antes interessados em prestar serviços aos xikrin, agora estão mais cautelosos. Os da aldeia Cateté, representados pela Associação Bep Noi, estão sem crédito na praça. Calcula-se que a Bep Noi tenha cerca de R$ 1,2 milhão em dívidas. Para os 310 índios da Djudjêkô, representados pela Associação Kákárekré, os serviços são prestados normalmente. Mas o gerente da associação, Francisco de Oliveira Ramos, trava uma batalha diária para conter os gastos. Envolve-se pessoalmente em cada uma das aquisições feitas pela entidade. Conta com o respaldo do presidente, o cacique Karangré Xikrin.
Por decisão do juiz Carlos Henrique Haddad, a Kákárekré está recebendo normalmente os R$ 243 mil mensais acertados com a Vale. A Bep Noi, que representa 600 índios, tem recebido R$ 150 mil. Em maio, houve a liberação extra de R$ 233 mil para o pagamento de verbas rescisórias da Bep Noi.

"Fizemos um enxugamento de pessoal e estamos aos poucos consertando os carros que estavam quebrados", diz Salomão Santos, gerente recém-contratado pela Bep Noi com a missão de colocar a casa em ordem. Segundo ele, havia 32 "kubens" (não-indígenas) trabalhando na aldeia do Cateté e, hoje, apenas dois. "Muitas pessoas haviam sido contratadas para fazer serviços na fazenda Kunumbre, como a colocação de estacas e o corte com motosserras", explica. O Valor apurou, porém, que um ex-presidente da associação Bep Noi chegou a ter empregada doméstica "kuben" para sua casa na aldeia. Outros chegaram a contratar peões para suas roças.
O juiz Haddad diz que viu excessos nos gastos da aldeia Djudjêkô e por isso pediu uma auditoria. Entre os pagamentos não autorizados por ele estão uma prestação de R$ 1.190,00 de som MP3 e kit auto falante, R$ 4,23 mil da Pizzaria Verdes Mares e R$ 3,18 mil da Locadora Marabá (a dívida total com a locadora de veículos é de R$ 110 mil). A justificativa é de que esses gastos não dizem respeito ao escopo do convênio com a Vale (saúde, educação, atividade produtiva, vigilância e administração).

"Incluíram minha conta como absurda. Mas meu estabelecimento não é só pizzaria. Na hora do almoço, funciona como churrascaria, serve comida. O serviço foi prestado", diz Fernando Antonio Ximenes, proprietário da Verdes Mares. Segundo ele, a falha foi da administração da associação Bep Noi. "Os índios são meio descontrolados mesmo com dinheiro."

Descontrole não é a melhor palavra para explicar a relação dos xikrin com o dinheiro. Nos sete dias em que a reportagem teve contato com eles, o que se pode observar é que eles são vidrados em tecnologias e máquinas. Adquirir esses produtos é para eles como adquirir o conhecimento do "kuben". Eles também não negociam desconto, têm dificuldade em entender juro em uma compra a prazo e acreditam no que lhes é informado por comerciantes.

Bep Karôti, que foi presidente da Bep Noi e que ainda hoje passa boa parte do tempo em Marabá, justifica que os índios estão comprando tevês para ver no telejornal o que está acontecendo no Brasil e as festas gravadas de seu povo. O som, para ouvir música indígena. "Por que o branco fez restaurante? Para comer. Nós também tem boca, barriga. Também quer experimentar", afirma. Ele também diz que os índios são os donos do minério. "Por que a Vale tem telefone, tevê, CD, carro e nós não pode?"

Os índios relacionam ainda algumas necessidades ao crescimento populacional (em 1995, eram 517; hoje, são 910) e ao desmatamento. "Hoje, a palha está longe. A caça está há 20 quilômetros. O fazendeiro acaba com a floresta. Queima jabuti, anta. Não tem como voltar à tradição", diz Bep Tum.

Bep Tum e Bep Karôti estão criando uma terceira aldeia. Tiveram problemas com a comunidade em parte por causa do excesso de gastos. Karôti, figura polêmica mesmo entre os xikrin, é o melhor exemplo da diferença entre o modo de vida na aldeia e na cidade.

Em Marabá, sua imagem é de gastador. Mas, na aldeia, a não ser pelos eletroeletrônicos, impera a simplicidade. Muitas famílias têm uma pequena criação de aves, as mulheres se pintam, dançam, falam a língua nativa, muitas preferem cozinhar do lado de fora da casa, com madeira. "Estamos preservando nossa cultura", diz Tamakwaré, da aldeia Cateté, que defende uma ampliação do acordo com a Vale. "Eles exploram Salobo, Sossego, Carajás e compraram Onça Puma. Só pagam Carajás."

As aldeias têm uma boa infra-estrutura, com casas, enfermaria (remédios cedidos pelo governo são insuficientes e as associações garantem o estoque), consultório dentário, motor para a geração de energia, água encanada e escola.

O juiz Haddad, que vai decidir o futuro dos xikrin, afirma que a Vale deve continuar a pagar aos índios. "Eles terão de se acostumar com menos, a trabalhar para se sustentar." Resta saber se o impacto desse aperto financeiro será sentido na cidade ou na aldeia.


Nenhum comentário:



Acesse esta Agenda

Clicando no botão ao lado você pode se inscrever nesta Agenda e receber as novidades em seu email:
BlogBlogs.Com.Br