terça-feira, 15 de maio de 2007

Contratos eletrônicos e litígios internacionais


Publicado no Valor Online em 15/05/2007
Gheiza M. Dias*

O volume de contratos executados através da internet registrou um crescimento recorde nos últimos anos e o Brasil já ocupa uma posição de destaque no e-commerce global. E, uma vez que a tendência verificada nos países desenvolvidos vem se afirmando no Brasil, não há como evitar que os elementos contratuais transpassem à esfera virtual. É neste cenário que nos deparamos com questões complexas de conflito de leis e jurisdição decorrentes da natureza do contrato eletrônico.

Primeiramente, o direito contratual eletrônico apresenta questões novas quanto à formação e validação do contrato e leis aplicáveis, incluindo as de proteção ao consumidor. E a questão da jurisdição do tribunal local não mais se limita às regras tradicionais, já que os avanços tecnológicos e os efeitos da economia global requerem a extensão da competência desses tribunais, resultando em um aumento do risco de litígio internacional.

Por outro lado, a diferença na velocidade do desenvolvimento da legislação de cada país em relação à matéria dificulta a unificação das regras de competência aplicáveis ao direito contratual eletrônico. Por exemplo, nos Estados Unidos, os tribunais já discutem as diferenças entre o contrato "click-wrap agreement" (contrato "clique") que exigem o clique de aceite, e o contrato "browse-wrap" (contrato "navegação"), nos quais a simples navegação do usuário pelo website implica na declaração tácita da vontade de contratar.

Dando o cunho prático às diferenças acima mencionadas, vale analisar a recente interpretação adotada pelos tribunais americanos quanto à validade das cláusulas dos termos de serviços. No caso do site Register.com, o Second Circuit (o Tribunal Federal da 2ª Região) entendeu que o usuário havia concordado com as cláusulas contratuais dos termos de serviços em um contrato navegação, já que o mesmo não era um visitante de primeira viagem, ou seja, o uso repetido do website foi suficiente para concluir que ele estava de acordo com os termos contratuais.

Em outro julgamento, o Second Circuit decidiu que um usuário dos serviços da Netscape não havia concordado com a seleção do foro, já que o link para os termos de serviços estava localizado abaixo do rodapé da página web, ou seja, fora da área de navegação. Já no caso Novak versus Overture Services, o tribunal julgou que o usuário teve plena oportunidade de ler/revisar o contrato e que a localização da cláusula do foro de seleção na página 300 não justificava a recusa da leitura integral do contrato.

Diante destas considerações, podemos concluir que o aceite eletrônico será validado pelos tribunais americanos quando observados o requerimento de notificação dos termos, que por ora deve ser claro e visível, e da ampla oportunidade de revisar o contrato.

Ao contrário, os tribunais europeus - que seguem a orientação da European Union Unfair Terms Directive - tendem a invalidar as cláusulas do contrato sempre que forem consideradas injustas. Em 2005, um tribunal francês não só decidiu pela invalidação de cláusulas de um determinado contrato de serviços ISP, mas também que os termos deveriam ser adaptados à realidade européia, pois não passavam de mera transposição dos termos elaborados nos Estados Unidos.

Em dois casos movidos na França contra provedores de serviço ISP - um envolvendo a AOL e outro, a Tiscali - o tribunal concordou com as alegações de que as cláusulas eram injustas e suscetíveis de invalidação. Dentre as cláusulas invalidadas encontram-se, no caso da AOL, a de autorização da transmissão de dados e/ou mudança da forma de pagamento sem o prévio consentimento do usuário e a limitação da responsabilidade civil do ISP pela interrupção dos serviços e por defeitos no software. No caso da Tiscali, foram invalidadas a cláusula de limitação da responsabilidade do ISP, impondo o requerimento de contratação mínima de um ano e pagamento obrigatório via débito em conta-corrente, e a que autorizava exclusivamente o ISP a rescindir o contrato sem apresentação de justa causa.

As lições acima são igualmente claras em relação à possibilidade de litígios internacionais envolvendo empresas e consumidores de procedência européia e americana: enquanto nos Estados Unidos o risco de litígio quanto à questão do aceite eletrônico pode ser minimizado através de observância às questões de procedimento contratual - ou seja, teve ou não o usuário a oportunidade de revisar o contrato -, a tendência européia é a de oferecer maior proteção aos consumidores.

No tocante ao Brasil, embora siga a tendência européia, existe ainda uma árdua tarefa para harmonizar os princípios vertentes do contrato eletrônico com a relação internacional de consumo. E, no que tange à contratação, por brasileiros, de serviços de empresas estrangeiras, não restam dúvidas: a legislação aplicável é a doméstica, assim como a competência é a das cortes brasileiras.

*Gheiza M. Dias é advogada e diretora do setor de comércio internacional do escritório Noronha Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações


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