quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Vale-Tudo

Num país que já está se tornando "vale-dependente", mais um programa de distribuição direta de dinheiro, desta vez para a cultura, tem avaliação favorável quase unânime, segundo pesquisa do Datafolha, realizada em parceria com a produtora cultural J. Leiva. Se aprovado no Congresso, será o primeiro vale da gestão Dilma Rousseff.


Entre os ouvidos pelo Datafolha, 92% dão ao programa notas que variam de 5 a 10; 60% dão a nota máxima. É um inegável sucesso de opinião, mas carrega um risco monumental de desperdício.

A pesquisa mostra que os grandes beneficiários da distribuição serão as duplas sertanejas. Entre os mais pobres, comprar livros está longe das prioridades, pouco acima de rodeio. Balé vem em último lugar, quase empatado com os museus.

Podem me chamar de elitista, mas a pergunta é inevitável: seria correto drenar dinheiro público da cultura para as milionárias duplas sertanejas e para os rodeios?

Faço a pergunta motivado, em parte, por duas questões da semana: 1) o relatório do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que mostra como vai mal a nossa educação mesmo comparada à de países pobres; 2) a crescente articulação para aprovação de mais um imposto, restabelecendo a CPMF.

De acordo com a pesquisa do Datafolha e da J. Leiva, as pessoas usariam o dinheiro público -algo em torno de R$ 3 bilhões- para, em primeiríssimo lugar, ouvir CDs. Na cidade de São Paulo, sobretudo de música sertaneja. Depois, pela ordem, viriam cinemas e DVDs.

Para os pobres - os mais necessitados de um repertório cultural -, as preferências, além de sertanejo, são pagode, funk, gospel e samba. Zezé Di Camargo e Luciano, Bruno e Marrone, Leonardo, Daniel, Roberto Carlos, Zeca Pagodinho e Calypso, nessa ordem, são os mais citados.

Alguns leitores podem me tachar de elitista, mas o que está em jogo é o uso de dinheiro público para patrocinar um repertório artístico de viés comercial.

Estudos em todo o mundo indicam que um dos diferenciais para explicar o desempenho dos estudantes é o que hoje se chama de "capital cultural". É algo farto para os ricos, cujos filhos vão a museus e têm biblioteca em casa. Escolas públicas que se destacam exibem, além de foco na leitura, atividades extracurriculares voltadas às artes, ou seja, oferecem chance de expressão e de encantamento com o belo. Num ambiente pedagógico, rap, pagode, funk, qualquer estilo pode ter um efeito tão forte quanto o de um jovem tocando numa orquestra.

O baixo capital cultural é uma das explicações para o fato de estarmos, segundo o IDH divulgado na semana passada, tão mal na questão da educação, mesmo em comparação com nações da América Latina de renda inferior à nossa.

Não seria melhor aplicar os R$ 3 bilhões em programas culturais voltados a alunos de escolas públicas?

O país está razoavelmente atento à corrupção, tema tratado diariamente na imprensa, mas pouco conhece dos desperdícios, que custam muito mais caro do que a roubalheira.

Um dos mais férteis estudiosos brasileiros das questões sociais, o economista Ricardo Henriques, secretário de Assistência Social do Estado do Rio, está mapeando os serviços públicos oferecidos às comunidades mais pobres. Notou que boa parte deles só existe no papel e que outra parte não funciona. Poucos dos que funcionam dialogam com serviços de outras secretarias. Quanto tempo duraria uma empresa que funcionasse assim? Depois se pergunta por que as milícias e os traficantes têm tanta força.

A diferença é que o governo tem sempre o "cliente" pagando, goste ou não do serviço. É espantoso como quase ninguém sabe que, apenas no custeio das aposentadorias de servidores públicos, são gastos R$ 40 bilhões por ano, o que equivale a mais de três vezes a Bolsa Família.

Os governantes dizem que contratam mais para prestar melhores serviços, mas não sabemos como isso funciona de fato. É um vale-tudo.

Na falta de dinheiro para a saúde, em vez de cortar gastos, ataca-se o bolso do "cliente" - e volta a CPMF. Saímos da campanha eleitoral com tantas promessas e voltamos à realidade de pagar mais impostos. Nesse contexto, o vale-cultura até que cai bem. Serve de circo.

PS - Coloquei no meu site (http://www.dimenstein.com.br) os dados do Datafolha que sustentam esta coluna.


Gilberto Dimenstein, do Aprendiz
Envolverde, 09/11/10


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