quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Pedir a quem tem para dar a quem não tem

Para Lucimara Letelier ONGs precisam se unir para organizar doações
Foto Pedro Kirilos

Captar recursos é uma expressão do economês que quer dizer, simplesmente, pedir dinheiro a quem tem para doar a quem tem pouco, ou nada. Não é difícil imaginar quão árdua é esta tarefa. Até porque, segundo uma pesquisa mundial feita em 156 países pela Charity Aid Foundation, 45% das pessoas já ajudaram um estranho na rua pedindo esmola, enquanto 30% da população já doaram para uma ONG e 20% já foram voluntários. Para tentar amarrar as políticas existentes no setor de captação de recursos já existe um Congresso Internacional de Captação de Recursos, que este ano aconteceu na Holanda.


Lucimara Letelier, de 33 anos, foi a única brasileira convidada para palestrar no encontro. Diretora da consultoria Management Center, que decidiu abrir depois de trabalhar na ONG ActionAid - “Muito séria na captação de recursos” - Lucimara conversou com o Razão Social durante mais de uma hora quando voltou do Congresso na Holanda. Abaixo, os principais tópicos abordados.

Sobre o Congresso
O grande foco do Congresso foram as fundações e as pessoas físicas, mas teve muita discussão sobre captação em empresas. Algumas pesquisas globais mostraram uma queda de 34% do aporte feito pelas empresas dos Estados Unidos e Europa em ONGs, de 2008 para cá. Isso se explica facilmente pela crise econômica mundial. A pesquisa trouxe também indicadores muito fortes sobre os caminhos que as empresas escolheram para apoiar: elas investem mais em projetos onde não precisam pôr dinheiro, em parcerias, equipamentos, voluntariado, serviços. Enfim, outras ações. É como se elas dissessem: “Nós não vamos parar de participar, mas vamos participar de outra forma”. Uma outra decisão que as empresas tomaram foi avaliar se aquilo que estão fazendo na área da filantropia está realmente tendo impacto junto ao consumidor, já que o consumidor de hoje é extremamente globalizado.

Sobre a posição do Brasil na filantropia
Percebemos lá no Congresso que os brasileiros têm mais debates sobre filantropia por um motivo muito simples: nós convivemos com desigualdade e pobreza no mesmo lugar onde convivemos com uma economia forte. Os países ricos lidam com essa questão de desigualdade social de maneira distante. Nós temos muito para ensinar, mas assim mesmo a América Latina não aparece nos estudos globais, por falta de dados. Por exemplo: marketing de causa (quando tem uma ação filantrópica associada a uma causa social porém com benefício direto ligado ao negócio). Nos Estados Unidos e Europa é uma coisa que está ficando de lado, enquanto no Brasil a tendência está em alta.

Pesquisa global
Foi apresentada lá no Congresso também uma pesquisa feita pela empresa Blackboud, que trouxe quatro tendências sobre a mobilização de recursos. A pesquisa envolveu 56 países e não envolveu o Brasil porque, segundo eles, não encontraram dados aqui para serem pesquisados. A primeira coisa que ficou claro é que já existe uma profissionalização maior de quem capta recursos. Em segundo lugar, ficou claro também que os doadores estão muito mais alertas: a pessoa que vai doar quer saber para quem vai doar, o que vai ser feito com aquele dinheiro. Outra tendência forte é que a captação de recursos hoje está sendo feita, majoritariamente, via online. Não pode ser mais aquela cartinha.

Sobre mídias sociais
Essa foi uma questão bastante decidida no Congresso porque é um potencial. Foi feita uma pesquisa que se chama e-benchmarking studie, que mostra que, por enquanto, esses canais ainda não são um meio de visibilidade. Não são efetivos em termos de gerar montantes de dinheiro, mas as ONGs começaram a encorajar doadores para usá-los. Uma grande camada de jovens, sobretudo na Ásia, Índia e China, está descobrindo a possibilidade de fazer filantropia. O WWF fez um aplicativo que está sendo muito usado. Não é tax message (quando a pessoa pode usar o celular para fazer uma doação via SMS, por exemplo). O aplicativo tem um tempo no celular e vai contando a vida de quem precisa da doação. Ainda por cima é viral, porque é possível mostrar para outras pessoas. Até realidade aumentada está sendo usada para trazer os jovens para essa cultura. Eu acho difícil, mas já há exemplos na Tailândia e Nova Zelândia, mostrando que alguns jovens estão indo para a rua. Lembra um pouco gincana de cidade do interior, mas eles conseguiram arrecadar até US$ 2 milhões. Teve ainda, lá no Congresso, uma discussão sobre facebook. Hoje, só dois países — Canadá e Estados Unidos — podem fazer doação direta via facebook.

Panorama das doações no Brasil
Antes, no Brasil, tínhamos só a reclamação da falta de cultura de doação, mas não tínhamos pessoas com recursos. Hoje é diferente. A grande tendência com relação ao doador brasileiro é que a classe média cresceu 21% e, com isso, cresce também a massa de pessoas que aumentaram seu poder de consumo. É natural que este movimento faça aumentar também o volume de doações. Até porque o brasileiro é um povo solidário. Essas pessoas têm recursos e as ONGs estão mais bem profissionalizadas para trabalharem a doação. A demanda e a oferta estão mais equilibradas. Quando se olha para pesquisas, o Brasil doa pouco. Mas, quando se olha para quanto se está caminhando e para o perfil dos doadores, a gente vê que vai crescer muito.

Perfil do doador brasileiro
O perfil deste novo doador, da classe C emergente, é o de pessoas que conhecem melhor a realidade do que precisa ser transformado, porque elas passaram por situações de pobreza também, portanto estão mais conectadas com a falta de direitos. A classe média alta está mais distanciada disso porque tem mais privilégios. Por causa disso, nós que trabalhamos com captação de recursos estamos mais otimistas: estamos vendo mais possibilidades de mudança de consciência. A diferença é: quando se trabalha com a classe alta, o apelo tem que ser assistencialista. Já na classe média está surgindo o doador mais com o perfil de investidor do que nunca. Não tem retorno, mas a ideia é de investimento num mundo melhor, mesmo. O globalgiving, por exemplo, criado em 2002, já arrecadou US$ 120 mil. É muita gente, a cada dez segundos tem uma doação. E ele acabou criando uma tendência.

Pesquisa mundial sobre doadores
A Charity Aid Foundation fez uma pesquisa interessante envolvendo, segundo eles, 95% da população global. Foram feitas três perguntas para pessoas em 156 países do mundo todo: “Você já ajudou alguma ONG?”; “Você já foi voluntário”?; “Você já ajudou algum estranho?”. O resultado é que ainda é a maioria que ajuda estranhos na rua. 30% da população já doaram para ONGs; 20% já foram voluntários e 45% já ajudaram um estranho. Este resultado levantou discussão entre ONGs. O que acontece é que a questão emocional pesa muito e as ONGs acabam perdendo o senso de urgência, já que existe uma pessoa na frente para ajudar. A pessoa vai comer com o dinheiro que acabou de ganhar, enquanto a ONG funciona como uma espécie de terceirização da doação.

Brasil e Índia
O país que mais se assemelha ao Brasil, em termos de doações, é a Índia. Lá, a classe alta é muito rica, a classe pobre é muito pobre e há uma classe média crescendo. Na Índia já existem ONGs muito profissionais — são 3,3 milhões delas, enquanto nos Estados Unidos há 1,3 milhão e no Brasil há 400 mil.

A questão dos ricos
Uma coisa muito discutida lá no Congresso foi o fato de que o movimento que o Bill Gates está fazendo, chamado The Pledge Giving (givingpledge. org) não deu certo na China. A conclusão é que os países emergentes que têm riqueza também têm uma cultura de filantropia. Mas não existe uma cultura profissionalizada de doações. Nós, dos países emergentes, não sabemos manter este doador. Para eles, a Índia, a China e o Brasil vão caminhar para uma filantropia muito parecida.

A filantropia e o preconceito
Aqui no Brasil a filantropia passou a ser encarada como pilantropia porque houve muita corrupção no sistema. Temos ainda que adjetivar a filantropia para conseguir aceitá-la Mas em outros lugares também houve isso, houve a questão da corrupção, e as pessoas não ficaram com esta percepção tão arraigada. O problema do nosso país é que não temos o mecanismo do outro lado, que fortalece os bons modelos. Agora temos o Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) e outros institutos, organismos sem fins lucrativos que divulgam positivamente as atitudes filantrópicas, para que a sociedade apoie e o governo também.

As escolhas das causas
O governo precisa criar incentivos e modelos que apoiem aquilo que a sociedade precisa como um todo. Isso evita que um indivíduo doador escolha a causa por conta de seu próprio interesse, não o da sociedade. Se o doador escolher, por exemplo, a causa da educação porque para ele é importante, mas o governo já resolveu a questão da educação, isso vai ajudar as pessoas, a humanidade, ou a ele próprio?

O que falta para uma real mudança
Falta união entre as ONGs, elas precisam advogar em sua própria causa, se unir, manifestar o tipo de impacto que tem. Na área das fundações, a grande tendência é o filantrocapitalismo, que é tratar as doações como investimento. Isso é uma tendência, que muda a maneira de captar.


Amelia Gonzalez
Razão Social, O Globo, 16/11/10


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