quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Como fazer o capitalismo se interessar pelos pobres? Bill Gates acha que sabe, mas está errado

Celebridades, às vezes (traindo certa culpa) dizem coisas assim: “o capitalismo melhorou sim, as vidas de muitas pessoas,mas também deixou de fora bilhões delas”. Como remediar? Bill Gates propõe: “Precisamos de um capitalismo mais criativo. As grandes corporações podem ser o instrumento para incluir mais gente no sistema; são elas que têm as competências para fazer inovações tecnológicas que funcionem para os pobres”.

Algum ogro ousaria discordar de proposta tão generosa? Obrigado por perguntar.

Se a história ensina algo, as grandes corporações não serão o caminho. Veja por que.

O capitalismo é construído sobre o direito das pessoas “terem coisas” (“titularidade da propriedade privada”,como dizem pomposamente). Existem grandes diferenças entre os cerca de 200 países que o praticam, como ensina em livro recente o scholar William Baumol. Há pelo menos quatro tipos de capitalismo - de qual deles Bill Gates estará falando?

Em certos bolsões da America Latina, Oriente Médio árabe e África, há o que chamam de capitalismo oligárquico. Nele, riqueza e poder são altamente concentrados, e as regras existentes reforçam essa situação. Naturalmente ,Bill Gates não está se referindo a isso.

Noutro tipo, o capitalismo é guiado pelo estado - governos incentivam os setores da economia que identificam como tendo mais chance de serem vencedores. As economias do sudeste asiático tiveram sucesso assim,mas nas regiões miseráveis a que se refere Gates, não há nada parecido com uma base industrial da qual se possa selecionar “vencedores”. Esqueça.

Um terceiro tipo seria o capitalismo de grandes corporações - o defendido por Gates como veículo de inclusão para os pobres. Grandes empresas dominam a produção e o emprego,produzindo em massa inovações criadas por empreendedores. Europa Ocidental e Japão são exemplos.

Será que filiais de grandes corporações desempenhariam esse papel em lugares pobres? Difícil. Falemos claro: grandes empresas tendem a só inovar para ganhar dinheiro da maneira pela qual estão estruturadas para ganhar dinheiro. Não lhes falta talento ou recursos, o que elas não têm é apetite para arriscar - têm medo de gerar a percepção de que podem tornar seus acionistas mais pobres com inovações de margem ($) mais baixa. Esse tipo de inovação é o único que pode dar certo em “mercados de pobre”. Bill Gates está exortando as grandes corporações a irem contra seu próprio DNA. O instinto delas é: inovação sim, mas só do tipo “mais da mesma margem”.

A IBM perdeu a liderança em PCs porque não deu para conciliar seus processos para comercializar main frames [caros e com margens de mais de 60%],com processos para PCs [baratos e margens de 20-30%]. Canon e Ricoh com pequenas copiadoras de mesa de margem baixa, fizeram a poderosa Xerox sangrar. As motos Honda idem com as Harley Davidson. Rádios e TVs transistorizados Sony acabaram com os modelos de mesa da RCA (e acabaram, de quebra, com a própria RCA) .

Inovações ”para pobre” geralmente entram no mercado “por baixo” - têm performances inferiores, são mais baratas e só têm apelo ao público que não usa o produto-padrão.

Quase ninguém usava fornos de micro ondas na China antes da Galanz. Com um modelo de negócio de altos volumes a preços muito baixos, a chinesa Galanz (não a Samsung, não a GE, não a Siemens) criou um mercado: em 1993 ela tinha 2% de market-share, em 2000 tinha 76%. Clientes menos exigentes (pobres) ficam felicíssimos em adotar produtos assim, pois a outra opção é não ter produto nenhum.

As grandonas, quando agem, o fazem quase sempre para reagir à ameaça de “tubaínas” locais. Veja a Unilever. Sua subsidiária na Índia - a Hindustan Lever - sempre focara o topo do mercado, até que apareceu a Nirma oferecendo detergente “para pobre”, muito mais barato, produzido segundo um modelo de baixo custo. Formulação, embalagem, produção, distribuição - tudo diferente. A Unilever teve de se mexer. Reformulou totalmente seu modelo para evitar que a “tubaína” da Nirma, vinda de baixo, continuasse a bicar o topo do mercado como já começara a fazer. A Unilever é das poucas que reconhece ativamente o mercado “para pobre”, tendo incorporado sua experiência hindu às suas práticas globais,mas ela é exceção. A GM fala há anos em produzir um carro abaixo de 3000 dólares, mas quem já lançou um foi a indiana Tata Motors. É assim desde sempre: a poderosa Western Union dona das comunicações no século XIX (telégrafo), rejeitou o telefone de Graham Bell porque seu sinal só alcançava três milhas. A Bell Telephone começou então com um modelo de baixo alcance e “subiu”, melhorando pouco a pouco a tecnologia até matar a Western Union.

O quarto tipo de capitalismo de que fala William Baumol - o capitalismo de empreendedores - é o que oferece melhores perspectivas. Nele, o dinamismo se origina em empresas pequenas, iniciativas de indivíduos empreendedores (modelo americano). Um montão de inovações que criaram setores econômicos inteiros surgiu assim. Quem quer incluir os pobres no capitalismo deveria estimular o empreendedorismo local entre os pobres, não tentar mudar a cabeça das grandes corporações. Elas dizem que farão mas não farão na escala necessária. Seu DNA não deixa.

Empreendedores locais sempre existem independentemente da população ser pobre ou rica. Sua ação se dá por meio do processo “schumpeteriano” de sempre: eles introduzem o novo “destruindo criativamente” o que havia antes.

Só uma coisinha: nos locais hoje excluídos, não há nada a ser destruído porque não há nada criado. O estímulo “de fora” deve ser para o surgimento da fase “pré-destruição”, ou seja, da fase da “criação criativa” mesmo. A partir daí, o empreendedor local resolve.



Clemente Nóbrega
Artigo publicado na Revista Época Negócios – Nº 20– Outubro 2008 – Coluna INOVAÇÃO.


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