segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Na surdina

Publicado pela Veja de 07/11/07

Feeney, um crítico dos impostos: as pessoas sabem gastar melhor do que o governo
Foto Jennifer S. Altman

A história do americano que doou 4 bilhões de dólares sem que ninguém tivesse percebido

A filantropia é parte indissociável do capitalismo americano. Os principais magnatas da história dos Estados Unidos deixaram bilhões de dólares para museus, escolas e todo tipo de instituição sem fins lucrativos. Criaram ainda fundações poderosas que carregam seus nomes até hoje. No início do século passado, figuraram como grandes filantropos Henry Ford (indústria automobilística), John Rockefeller (petróleo) e Andrew Carnegie (aço). Essa tradição persevera ainda hoje, em razão de uma cultura que valoriza a filantropia e do estímulo tributário (o imposto sobre transmissão de grandes fortunas pode chegar a 70% em alguns estados). Qualquer que seja a razão que os leve a fazer doações, o fato é que todos os magnatas americanos são grandes filantropos. A maioria deles faz questão de propagandear seus atos de generosidade. Mas existe um time de empresários que prefere fazer filantropia anonimamente. Entre estes, nenhum é mais excêntrico e reservado do que o americano de origem irlandesa Charles "Chuck" Feeney, que doou toda a sua fortuna de 4 bilhões de dólares sem que ninguém tivesse notado. Uma das particularidades desse filantropo é o fato de ele ter no processo de paz da Irlanda do Norte uma de suas principais causas.

Até recentemente, pouco se conhecia sobre a trajetória de Feeney. Parte do mistério começa a ser desvendada agora, com a publicação, nos Estados Unidos, do livro The Billionaire Who Wasn't: How Chuck Feeney Secretly Made and Gave Away a Fortune, ainda sem tradução no Brasil, escrito pelo jornalista irlandês Conor O'Cleary com a ajuda do próprio perfilado. Nascido em Nova Jersey e descendente de irlandeses, Feeney, hoje com 76 anos, ficou rico como sócio da Duty Free Shoppers, uma rede de lojas de aeroportos que vende produtos livres de impostos. Feeney descobriu esse filão nos tempos em que vendia produtos a soldados americanos no exterior. Nos anos 1960, o negócio floresceu com a explosão do turismo japonês. Sua cadeia tornou-se uma das maiores do mundo, com forte presença nos países da rota do Pacífico, como Austrália, Taiwan e Cingapura.

A história de Feeney, que começou como simples comerciante, iguala-se à de tantos outros descendentes de imigrantes que realizaram o sonho de enriquecer na América. Não fosse por um detalhe: em vez de acumular sua riqueza, Feeney, que tem cidadania americana e irlandesa, sempre doou praticamente tudo o que ganhava, reservando apenas uma fração para o sustento de sua família. O empresário não tem carro nem casa própria, e acompanhava seus negócios viajando de classe econômica. Doava em parte por ideal, mas em boa medida pela aversão completa ao ato de contribuir para o Fisco. Ele afirmou certa vez que preferia dar esmolas a pagar impostos. "As pessoas sabem o que fazer com o dinheiro melhor do que o governo." Evitar tributos, para Feeney, é uma filosofia de vida: além de ter ascendido num ramo cujo negócio é vender produtos com isenção de impostos, sua empresa tinha sede em paraísos fiscais.

A filantropia de Feeney passou despercebida até 1996, quando vendeu a Duty Free Shoppers. Na transação, o empresário embolsou 3,5 bilhões de dólares. Embolsou, não, embolsaria – porque doou essa dinheirama à Atlantic Philanthropies, criada por ele em 1982 e que já havia recebido outros 500 milhões. Com isso, a instituição se tornou uma das maiores entidades americanas de filantropia. Em 2006, ela investiu 500 milhões de dólares, valor inferior apenas ao de duas das mais ricas fundações americanas, a Ford e a Bill and Melinda Gates. A Atlantic se dedica, entre outras ações, a aprimorar a saúde e a educação em diversos países. Feeney doou também 600 milhões de dólares à Universidade Cornell, onde estudou hotelaria, transformando-se, assim, no maior colaborador individual dessa instituição. Mas a mais conhecida de suas causas é, sem dúvida, o apoio dado ao partido Sinn Fein, o braço político do IRA. Feeney conheceu Gerry Adams, o líder do Sinn Fein, no início dos anos 90, e passou a ajudar o movimento republicano da Irlanda do Norte. Doou, por exemplo, 720.000 dólares para que o partido mantivesse um escritório em Washington. Ao empenhar-se na institucionalização do movimento republicano irlandês, Feeney deu a sua contribuição ao processo de pacificação naquela região.

O lema de Feeney é "doe enquanto ainda está vivo". Conforme afirmou nas raras entrevistas que concedeu, sua intenção é utilizar os recursos disponíveis para resolver problemas atuais. Por isso a Atlantic Philanthropies é uma entidade fadada a desaparecer: investe o máximo possível e, quando seus recursos acabarem, simplesmente fechará as portas. Estima-se que isso ocorra em 2016. Uma das frases de Feeney poderia estar na cabeça dos governantes brasileiros: "Gastar não é problema, mas gastar bem, sim".


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