quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Uma porta de saída do Bolsa Família

Tatiana Bautzer
Publicado pelo
Valor Online em 04/10/07

Ana Gláucia Martins Jucá, cliente do CrediAmigo Comunidade em Califórnia, distrito de Quixadá, recebe R$ 112 de Bolsa Família e está no segundo empréstimo para produzir bolsas e roupas
Foto Jarbas Oliveira / Valor

Eles vão chegando aos poucos à igrejinha caiada do distrito de Califórnia, em Quixadá, interior do Ceará. A grande maioria vem à pé - um ou outro, de moto. O padre empresta a igreja fora dos horários de missa para as reuniões do banco comunitário.

Pele curtida de sol, de boné ou chapéu e com calças surradas, os poucos homens sentam-se nos bancos mais distantes. As mulheres, com vestidos simples ou de jeans e blusinhas de malha. Inicialmente desconfiados, os clientes logo logo abrem sorrisos quando falam dos filhos ou explicam os detalhes das atividades informais que criaram.

Ana Gláucia Martins Jucá, 34 anos, é das mais desenvoltas. Grávida de oito meses do quarto filho, a costureira preside o banco comunitário do vilarejo, que financia as atividades informais dos moradores. O "Banco de Desenvolvimento da Califórnia" é um exemplo do modelo escolhido pelo Banco do Nordeste (BNB) para emprestar à classe E, população que estava excluída até mesmo do microcrédito tradicional. Mais de 60% dos clientes dos bancos comunitários recebem Bolsa Família. Os bancos do interior do Nordeste seguem o modelo de "village banks", bem sucedido em áreas semi-urbanas na Indonésia e Bangladesh.

No microcrédito tradicional, que concede empréstimo inicial de até R$ 1 mil, analisa-se o fluxo de caixa do negócio e exige-se no mínimo um ano de experiência. No CrediAmigo Comunidade, não há análise financeira e o primeiro empréstimo é de no máximo R$ 300. Também é permitido que até 20% dos clientes estejam iniciando o negócio com o crédito.

Em Califórnia, Gláucia está terminando de pagar um empréstimo de R$ 300 e está pedindo outro de R$ 450 para comprar tecidos, linha e aviamentos para as bolsas e roupas que faz em casa. Apesar de não saber exatamente os ganhos, calcula ganhar R$ 150 mensais com a confecção. Esta não é sua única renda: casada com um segurança particular contratado em Fortaleza, que volta a Califórnia nos fins de semana, Gláucia recebe R$ 112 de bolsa família.

"Além de ter menino, toda minha vida trabalhei com costura" brinca Gláucia, enquanto ajeita os produtos artesanais no ateliê improvisado nos fundos de sua casa, a alguns metros da igrejinha onde ocorreu a reunião. "Mas desde que entrei no banco tá dando pra ganhar mais". Antes, Gláucia cobrava R$ 12 pelo feitio de um vestido - não tinha como comprar o material por conta própria. Agora compra o tecido, aviamentos e linha e gasta R$ 20 para fazer um vestido que vende por R$ 40. "Eu ganho mais por peça, e não tem nada melhor que não ter patrão", diz a costureira.

Outro cliente do banco comunitário e do Bolsa Família é Francisco Gonçalves de Oliveira, 49 anos. "Seu Tatá", como é conhecido, está abrindo uma padaria num imóvel que ele mesmo construiu ao lado de sua casa. Pai de dez filhos (o mais velho de 26 e o menor de 3), seu primeiro empréstimo foi de R$ 100 para comprar doces e balas que vendia de porta em porta. Está no terceiro crédito, de R$ 450. Espera conseguir R$ 350 mensais com a venda na padaria e entregas de pão nas cidades próximas.

A mulher recebe mensalmente R$ 112 de bolsa família. Hoje, ele não depende tanto desse dinheiro para sustentar os filhos, mas diz que se perdesse o benefício, faria muita falta. Ele ainda está longe de conseguir uma renda superior a R$ 120 por integrante da família. "Se a gente tivesse uma renda certa, tudo bem, mas tem mês que é ruim".

O CrediAmigo Comunidade ainda representa pouco na carteira total de microcrédito do BNB. Liberou apenas R$ 12,9 milhões em dois anos e tem uma carteira ativa de R$ 3,5 milhões, dentro de uma carteira total de microcrédito de R$ 200 milhões. Os 13.735 clientes do Comunidade tomaram empréstimos de R$ 348,00 na média.

Todos os clientes dos bancos comunitários demonstram o medo de perder o Bolsa Família. O próprio BNB evita dizer que o microcrédito representa uma alternativa para saída do programa federal. O superintendente de microfinanças do BNB, Stélio Gama Lyra Júnior, prefere usar outro termo. "Acho que é a porta de entrada para inserção econômica".

A secretária de articulação institucional do Ministério do Desenvolvimento Social, Heliana Kátia Campos, também evita a palavra saída e diz que o microcrédito é um instrumento de "emancipação financeira" dos atendidos pelo Bolsa Família. Não há um levantamento de quantos beneficiários do bolsa família são também tomadores de microcrédito. Mas programas como o CrediAmigo Comunidade e o Pronaf B, para financiamento de agricultura familiar, registram uma média de 60% de beneficiários.

O Ministério está fazendo um projeto piloto com o BNB e Ministério do Trabalho no interior do Ceará para criar novas linhas de crédito voltadas exclusivamente a cadastrados no Bolsa Família. "É fato que a informalidade será por muito tempo característica das economias latino-americanas, não se imagina que sejam gerados empregos formais suficientes para todos", diz a secretária. Um dos projetos é fazer empréstimos que sejam saldados em produtos, voltados a pessoas que não têm acesso a nenhum tipo de microcrédito porque não tem CPF, por exemplo.

As prefeituras revisam os cadastros a cada dois anos e retiram famílias que já conseguiram uma renda sustentável maior que o máximo permitido pelo programa, de R$ 120 mensais per capita. "Não há cancelamento do benefício enquanto a renda não for constante e sustentada", afirma a secretária.

De fato, os clientes que estão entre o primeiro e terceiro empréstimo ainda têm rendimento incerto e atividades pouco sólidas. Mas a mudança do tamanho da atividade informal e renda gerada é notável para os que já estão no sexto ou sétimo ciclo - em média, participando de programas de microcrédito há dois anos.

Em Ocara, cidade cearense de 20 mil habitantes no caminho entre Fortaleza e Quixadá, Francisca Gonzaga se destaca no grupo de clientes do banco comunitário Vitória, reunido na casinha de um cômodo que sedia a associação de moradores.

Francisca, integrante do banco comunitário Vitória, vendia confecções e pediu o primeiro empréstimo de R$ 100 no CrediAmigo Comunidade há quase dois anos. Sua solicitação mais recente é de R$ 900, mas agora para financiar capital de giro da churrascaria "Pisa na Fulô", que possui na beira da estrada estadual que passa por Ocara. O crédito elevou sua margem de lucro com a venda de roupas e Francisca começou a pensar em realizar o sonho do marido, Manoel, que havia trabalhado como churrasqueiro por 15 anos num restaurante da região.

Os dois alugaram a casa e compraram as geladeiras, equipamentos de cozinha e móveis de madeira para o salão. A churrasqueira de tijolos foi construída no quintal. Manoel fica na churrasqueira, Francisca na cozinha e as duas filhas adultas ajudam a servir. Francisca não tem do que reclamar. "Dá pra tirar por mês uns R$ 700, até R$ 1000", conta.

Nos bancos comunitários é visível a metodologia criada para mitigar o altíssimo risco de inadimplência nesta camada da população que não tem nenhum tipo de garantia a oferecer além do aval solidário.

Para reforçar os laços entre os clientes, co-responsáveis cruzados pelos empréstimos, os bancos comunitários têm a obrigação de reunir todos os integrantes mensalmente. As reuniões são festivas: as mulheres trazem bolos, salgadinhos, queijo feito em casa, refrigerantes. Quanto mais próximos os clientes forem uns dos outros, maior a disposição de ajudar em caso de necessidade e menor o risco de perda.

Em Paracuru, cidade litorânea cearense, o banco Esperança reúne sacoleiras, artesãs, uma cabeleireira e uma que acaba de abrir uma pequena padaria em casa. Maria Melo de Oliveira, 38 anos e seis filhos, diz que o grupo se reuniu no mês passado para ajudar uma das integrantes, que ficou doente, e que já pagou uma outra vez a parcela de uma sacoleira que estava grávida, sem condições de trabalhar. Os recursos do banco comunitário em Paracuru aumentaram expressivamente a renda de várias sacoleiras. Antes a maior parte delas trabalhava para os "galegos", microempresários que traziam as peças para venda em consignação, porque não tinham o capital para comprar os produtos.

Marliete Ferreira conta que os galegos traziam as peças para ela cobrando R$ 10 e que o máximo que ela conseguia na venda era R$ 12- praticamente não sobrava nada para ela. Com o crédito, agora vai até centros de comércio popular em Fortaleza e consegue comprar as peças por R$ 4 ou R$ 5- agora a atividade resulta em renda significativa.

Em Serra Preta, distrito de Feira de Santana, na Bahia, a inauguração dos bancos comunitários Beira Rio e União atraiu num fim de tarde de quarta-feira 50 pessoas para a casa de uma vereadora numa área rural. Os assessores de crédito preparam a mesa para que os 31 clientes assinem as duas promissórias e amarram em pilares da varanda fitas verdes que são cortadas na inauguração. Cada grupo trouxe uma muda de árvore.

Os assessores começam a reunião reunindo todos em círculo para contar um caso de sucesso na região, o da cozinheira Maria dos Anjos Ezu, que está no terceiro crédito para seu negócio de marmitas. Agora fornecendo para a prefeitura, ela receberá um empréstimo para reformar a área de sua casa onde serve almoço. O sucesso para o cliente do banco comunitário é relativo: pode ser um pequeno aumento de renda que o leva à classe D ou C.

A presidente do banco União, Edeane Duarte Sena, termina a cerimônia lendo um texto que descreve como a águia empurra seus filhotes do ninho para voar. Diz que o microcrédito é o "empurrão" que fará com que os clientes do banco comunitário superem as dificuldades do mercado de trabalho. Todos aplaudem.


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