quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Mudar caridade por justiça para ter desenvolvimento

Miren Gutiérrez
Publicado pela
Envolverde em 10/10/07

O Chamado Mundial contra a Pobreza (GCAP) conseguiu iniciar um processo de mudança no “sentido da percepção da assistência internacional “desde a caridade para a justiça”, disse uma das presidentes desta rede da sociedade civil, Sylvia Borren. Ela, que também preside a organização humanitária holandesa Oxfam Novib, alerta que dentro do GCAP se reproduzem as tensões entre o Norte rico e o Sul pobre e entre homens e mulheres, bem como outros conflitos. Mas, “a chave é trabalharmos juntos de modo pratico, nos comunicarmos e encontrar soluções”, explica a ativista, que integra a presidência coletiva desta rede mundial junto com Kumi Naiddoo, secretário-geral da Civicus, e Ana Agostino, integrante do Grupo de Trabalho Feminista do GCAP.

Esta é uma síntese da longa entrevista que Borren concedeu à IPS.

P- No último dia 17 de outubro, o GCAP e a Campanha do Milênio da Organização das Nações Unidas bateram o recorde do Guinness de maior mobilização coordenada da história, quando 23,5 milhões de pessoas em mais de cem países ficaram de pé contra a pobreza. O presidente de Malawi, Bingu wa Mutharika, uniu-se às manifestações. Em Jaipur, na Índia, 38 mil fanáticos do cricket ficaram de pé. Nas Filipinas, milhares de pessoas fizeram uma caminhada contra a pobreza. Esperam voltar a bater este recorde neste ano?
R- Que 23, 5 milhões de pessoas em todo o mundo tenham se colocado de pé contra a pobreza é um feito que ainda me entusiasma, mas me entristece que a mídia quase não tenha prestado atenção. Espero que isso seja muito diferente este ano, mas não poderia prever a quantidade de pessoas que participarão. Desta vez os participantes escolherão diferentes maneiras de pedir justiça. Haverá grupos que ficarão de pé, outros irão cantar, e haverá partidas de futebol nos quais se “soprará o apito” para denunciar a pobreza.

P- A senhora escreveu a letra de uma canção, Réquiem pela pobreza, que será interpretada por orquestras e coros infantis em vários países no dia 17 de outubro. Como acha que cantar fará uma diferença?
R- Esta canção foi extraída do mais extenso Réquiem pela pobreza, que escrevi junto com o musico Peter Maissan. A peça foi coreografada pela companhia de dança intercultural Le Grand Cru. Esperamos que seja representada em 20 países. Na Holanda, um coro de mais de 700 vozes o cantará diante do Parlamento de Haia, e também será representada em Maastricht e Heerenveen. Também nos disseram que a cantarão em 16 lugares diferentes da Índia.
O Réquiem pela pobreza é muito comovedor, e conecta a audiência com a realidade cotidiana da pobreza em um nível emocional. O mais importante é que qualquer um pode cantá-lo, e ninguém que o faça poderá tirar a melodia nem a letra da cabeça. É uma peça composta para coro, dois solistas e bailarinos. Vimos gente que a contou uma e outra vez em diferentes atuações.

P- Este ano, o lema é “!Maniufeste-se!”. Como planejam canalizar as opiniões e demandas do público?
R- Às vezes, se fala e escreve sobre a pobreza com fatos e números: meio milhão de mulheres morrendo no parto por ano, 80 milhões de crianças não vão à escola e trabalham. Estes fatos se tornam abstratos. Não é conexão suficiente com cada mulher, com cada criança a quem se rouba o futuro. Precisamos que todos entendam o profundo sofrimento que a pobreza produz e como podemos mudar esta situação através de nossa própria conduta e de nossas cobranças políticas.
Espero que as pessoas se comovam de coração para que muitos mais se conectem com nossa causa, se manifestem, exijam novas políticas comerciais e de assistência, se convertam em consumidores justos... trata-se de reconhecer e sentir nossa humanidade comum e nossa necessidade de atuar pela justiça.

P- Comenta-se que neste ano a campanha é mais política. Em que sentido?
R- Me convenci de que os líderes políticos necessitam que, em nossa qualidade de eleitores, sejamos extremamente claros em nossas demandas. De outro modo, promessas com os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio serão feitas, mas não cumpridas.
A União e a Comissão Européia falam muito sobre a erradicação da pobreza, mas suas previsões de investimento para isso até 2013 mostram uma queda significativa do dinheiro que será destinado à educação, saúde, luta contra a aids, e não haverá quase dinheiro para empregar em justiça de gênero, para apoiar meninas e mulheres.
Portanto, precisamos explicar aos cidadãos de todo mundo o quanto são injustas as regras do comércio mundial, que vão contra os agricultores e produtores do Sul em desenvolvimento, mas também contra os do Norte, em particular contra pequenas empresas que, com grande freqüência, são dirigidas por mulheres.
Necessitamos defender que a produção e o tráfico de armas reduzem nossa segurança. Precisamos demonstrar como a ajuda ainda está atada a condições que favorecem os países ricos.
Conhecemos todos os fatos e números para expor estas injustiças, que literalmente matam em todo o mundo nossas meninas e mulheres, que carregam nas costas as injustiças mais pesadas. Antes de estabelecer qualquer política em nível local, nacional e mundial, pode e deve ser avaliado seu impacto sobre as mulheres. E esse será um indicador seguro sobre o potencial de uma política para levarmos a um mundo justo e sem pobreza. Nesse sentido, o GCAP é, e deve ser, muito político. Mas, trata-se de povos, não de partidos.

P- Pode mencionar efeitos específicos da campanha do ano passado?
R- O movimento GCAP é uma ampla coalizão de muitas organizações civis, grupos comunitários, movimentos religiosos, sociais e sindicais. É jovem, tem poucos anos de vida, e deixou sua marca, por exemplo ao pressionar o Grupo dos Oito (países mais poderosos do mundo) para que assumam compromissos concretos sobre a ajuda a África.
O GCAP está mudando o sentido da percepção da assistência da caridade para a justiça. Expõe a uma audiência muito mais ampla de cidadãos de todo o mundo que a pobreza é uma questão de privilégios e de exploração, de despojar as pessoas de seus direitos e suas vidas.

P- A campanha começou em 2005. Depois do enorme esforço que esta aliança mundial fez para mobilizar massas em todo o mundo, já não há sinais de cansaço?
R- Os movimentos e as redes sociais se esforçam muito para ser organizarem, mas estou assombrada com a energia que as coalizões do GCAP em nível nacional conseguiram gerar. Por isto estou tão convencida de que este amplo movimento da sociedade civil mundial poderá comover políticos e empresários como ninguém mais.
Dentro do movimento teremos de enfrentar e solucionar todas as tensões presentes em qualquer relação desigual de poder: homens/mulheres, Norte/Sul, diferenças de classe, raça, idade, religião, de educação, capacidades especiais, orientação social... não há diferenças que não existam dentro do GCAP. A chave é trabalharmos juntos de modo prático, nos comunicarmos e encontrar soluções.
Nos demos conta de que podemos ir mais além dos estereótipos e das posturas ideológicas. Isso nem sempre é fácil, mas minha experiência no GCAP indica que podemos fazê-lo. O que podemos alcançar na prática? As metas do milênio, naturalmente, além de justiça de gênero, direitos humanos, cuidado com o meio ambiente... mas, não queremos reduzir pobreza pela metade, queremos erradicá-la.
(Envolverde/ IPS)

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