sexta-feira, 25 de julho de 2008

Todo mundo quer saber

Olívio Guedes, diretor do Museu Brasileiro da Escultura, ministra aula no Universo do Conhecimento, uma das novas casas de cultura no bairro dos Jardins
Foto Sergio Zacchi/Valor


Logo no hall de entrada da Escola São Paulo, uma das muitas casas de cultura abertas nos últimos anos no refinado bairro dos Jardins, na esteira do sucesso da Casa do Saber, lê-se a placa: "Cultura é saúde". De fato, desde que trocou as aulas semanais de natação por cursos de literatura e arte, o advogado Marcio Silveira, de 37 anos, se sente melhor e mais produtivo. Diretor-jurídico da Oracle do Brasil, gigante no ramo de software empresarial, Silveira conseguiu convencer outros colegas de trabalho a trocarem atividades esportivas ou de lazer por algumas horas por semana ouvindo contos de Jorge Luis Borges.

Silveira desembolsa cerca de R$ 300 por mês para freqüentar vários tipos de cursos, um pouco mais do que gastaria na academia de ginástica e na natação. Não se arrepende. Hoje, mesmo com alguns quilos a mais, é capaz de citar de cor trechos do livro "Cidades Invisíveis", de Italo Calvino, um de seus favoritos, cujo diálogo entre os personagens Marco Pólo e Kublai Khan virou uma espécie de mantra diário. "Esse texto tocou-me profundamente e levo-o comigo no meu dia-a-dia, inclusive na empresa, pois é por meio da aprendizagem contínua que se garante a renovação do olhar e conseqüentemente a busca de alternativas viáveis", diz Silveira, animadíssimo com a próximo curso que freqüentará por três dias - A Arte de Colecionar: Paixão e Determinação.

Silveira não pode mais ser considerado um advogado excêntrico. Buscar aperfeiçoamento intelectual de todos os tipos virou uma tendência forte entre a classe média de São Paulo e de outras capitais brasileiras. Só na região dos Jardins há pelo menos uma dúzia de casas que oferecem todos os tipos de cursos possíveis, dos mais tradicionais, como História da Filosofia, aos mais curiosos, como A Arte de Contar Histórias para Crianças.


A Casa do Saber, por exemplo, a mais conhecida de todas, que pelo número de alunos de bom poder aquisitivo chegou a ser apelidada de "Daslup" (combinação de Daslu, a megaloja de luxo paulistana, com a Universidade de São Paulo, a USP, berço da intelectualidade paulistana) acaba de fazer mais um investimento de peso. Além das duas sedes em São Paulo - uma nos Jardins, outra em Higienópolis - e uma filial carioca, no bairro da Lagoa, a casa também mantém, desde o dia 20, uma unidade no luxuoso Shopping Cidade Jardim. O valor do empreendimento não é revelado, mas pelo preço do metro quadrado do shopping, um dos mais caros da cidade (cerca de R$ 10 mil), e o amplo espaço da nova unidade (200 m²), é possível ter uma idéia de como a Casa do Saber virou uma âncora poderosa e lucrativa dessa modalidade de negócios.

Para muitos, a força desses cursos é parte do ciclo de bonança econômica, que favorece o surgimento de uma nova classe média, sempre ávida por legitimação social por meio da cultura. Esse fenômeno, entretanto, tem lá seu lado positivo. "Todo mundo deseja o saber. A classe média alta também quer saber além dos horizontes da Daslu, e é bom que existam espaços para ela", justifica Daysi Bregantini, diretora do Espaço Cult. "O simples contato com alguns pensadores, mesmo que superficial, pode contribuir para melhorar o repertório", avalia.

Renato Janine Ribeiro, professor de filosofia política da USP está alinhado com Daysi. Para ele, não há nenhum mal em verificar o anseio dos emergentes por cultura. "A ignorância leva a um constrangimento social, que acaba obrigando o sujeito a procurar por conhecimento", afirma Ribeiro. "E esse tipo de pressão é ótimo, leva a pessoa a avançar na vida."

O aumento do número de casas de cultura foi acompanhado por uma mudança do perfil dos freqüentadores. A classe média alta, representada por empresários, profissionais e socialites, ainda forma a base de sustentação dos cursos, mas, nos últimos anos, tem dividido o espaço nas salas com estudantes de pós-graduação, à procura de aulas complementares, e com profissionais das mais variadas áreas e classes sociais, bancados por suas respectivas empresas. Na maioria dos casos, o funcionário é levado ao curso para aprofundar o conhecimento na sua área. "As empresas que pagam cursos para seus funcionários exigem aplicação prática", explica Daysi. "Por exemplo, no curso A Arte de Editar um Livro, aqui da Casa Cult, grande parte dos alunos era de profissionais ligados a editoras."

No entanto, há casos cada vez mais comuns de a empresa se dispor a bancar o curso de um funcionário mesmo que não haja nenhuma ligação do conteúdo da aula com a atividade profissional. A socióloga Marina Bedran, curadora da Casa do Saber, acredita que essa tendência é reflexo imediato da crescente segmentação do mercado. "O profissional fica tão preso ao seu universo, ao seu saber, que acaba sendo necessário o conhecimento em outras áreas para que ele ganhe mais produtividade", comenta.

Na Casa do Saber, há bancários fazendo curso de literatura, com bolsas de estudo oferecidas por suas companhias. Para Marina, o resultado nem sempre é satisfatório. "Por um lado, é muito bom abrir a cabeça de um profissional para outras culturas, para outros conhecimentos, enfim, humanizar sua formação, mas as empresas, tão afeitas a padrões, a normas, podem criar, meio sem querer, funcionários mais contestadores, mais idealistas", alerta.

No Espaço É Realizações, localizado na Vila Mariana, a porta está aberta para alunos de todas as idades e classes sociais. Há cursos sobre tudo, seja para os que se interessam apenas superficialmente por um assunto e desejam cursos rápidos, de duas horas, seja para alunos de pós-graduação com lacunas na formação. Dona de casas entediadas e aposentados também são bem-vindos. O curso A Arte de Contar Histórias faz sucesso com senhoras voluntárias que querem aprender a narrar histórias para crianças doentes em hospital. Executivos têm preferência por cursos de filosofia e arte contemporânea. "Nosso público é muito variado, mas a motivação é a mesma: todos querem aprender a consumir cultura de qualidade", diz Edson Filho, diretor-geral da Espaço É Realizações.

Considerada uma das pioneiras do ramo, a da Augôsto Augusta, no mercado há dez anos, é a mais ortodoxa das casas de cultura. Localizada na rua Augusta, também nos Jardins, nasceu como uma extensão da galeria e livraria inaugurada em 1968 por Regina Berjuhy e Lúcia Bertizlian. Em 1998, assumiu-se como um núcleo de reflexão sobre cultura e arte, com cursos de música, teatro, literatura, cinema e filosofia. A escola recusa-se a ministrar cursos rápidos e não faz questão de atrair todos os perfis de alunos. "Temos aqui desde alunos jovens até senhores de 84 anos, mas todos, com níveis intelectuais altíssimos, tem o mesmo objetivo: aprofundar o conhecimento", informa Regina. "Ninguém vem aqui para fazer hora, para aparecer ou por modismo: quem vier com essa proposta certamente vai se sentir constrangido."

Regina revela certo incômodo com a proliferação de escolas que ministram cursos de conhecimento na região, a maioria, segundo ela, com a clara intenção de aproveitar apenas um novo filão do mercado. "Elas tentam copiar o nosso esquema, mas não conseguem", diz, sem citar nomes. Mas o alvo, certamente, é a Casa do Saber, a mais badalada casa de conhecimento de São Paulo - a abundância de socialites freqüentando os cursos chegou a provocar a oposição de alguns intelectuais, que não aceitaram dar aulas no local.


Segundo a curadora da Casa do Saber, o perfil dos freqüentadores hoje é muito mais heterogêneo. Os cursos se diversificaram ao longo do tempo e atraíram um público diferente e diferenciado. Marina não concorda com o estereótipo criado em torno da casa, de ser apenas mais um ponto de encontro dos bem-nascidos - ou novos-ricos - da cidade. "Temos de tudo aqui, de estudantes de classe média a profissionais de pós-graduação e também não temos absolutamente nada contra o aluno que não tenha uma ligação profissional, diretamente produtiva, com as aulas", afirma.

Ela conta que atualmente é muito comum a procura por temas contemporâneos, tanto por estudantes, que querem se aprofundar no tema, quanto por empresários, profissionais liberais e socialites que desejam "estar por dentro do que acontece no mundo". "Os nossos cursos sobre a eleição nos Estados Unidos ou sobre os Brics [expressão criada pelo economista Jim O'Neill para denominar os principais mercados emergentes do mundo, Brasil, Rússia, Índia e China] fazem muito sucesso."

O músico e compositor Luiz Tatit, professor titular do Departamento de Lingüística da USP, vê com bons olhos o aumento do número de casas que ministram cursos de humanidades. Na sua opinião, eles podem - e devem - ser uma ótima alternativa ao academicismo. "É preciso louvar qualquer instituição que tem como objetivo vender cultura, mesmo que não tenha a pretensão de se aprofundar no tema", diz Tatit.

Ele já foi convidado para dar aulas no Espaço Cult e ficou impressionado com o clima informal das aulas. "O lugar era agradável, as poltronas dos alunos eram muito confortáveis e havia um interesse genuíno do público pelo que eu dizia - como posso ser contra isso?", indaga Tatit. "Era um curso ministrado à noite, freqüentado basicamente por estudantes. Mas eu não teria problema nenhum em dar aula para mulheres 'desocupadas'. Seria puro preconceito da minha parte."

A Universo do Conhecimento, inaugurada recentemente, segue o script da maioria das outras escolas. Localizada num casarão tombado nos Jardins (na alameda Ministro Rocha Azevedo) mantém o clima de sala de visitas. Os alunos são recebidos ao som de música clássica por uma espécie de hostess, que anota seus nomes e os encaminha até a sala de aula. Tudo planejado pela empresária Luciene Miranda de Paula, ex-sócia da Universidade São Marcos, fundada por sua família. Há quatro anos, Luciene coordenava cursos livres da Livraria Cultura, na região da avenida Paulista. A demanda aumentou e ela decidiu investir entre R$ 1,5 milhão e R$ 2 milhões na fundação da Universo do Conhecimento, que integra um espaço maior, dedicado à cursos de especialização e pós-graduação. "Se há melhora no poder aquisitivo, as pessoas procuram mais qualificação", observa Luciene.

A reportagem assistiu a um dos encontros culturais da noite na Universo do Conhecimento - A Arte como Valor: Simbólico, Emocional e Mercadológico -, ministrado por Olívio Guedes, diretor do Museu Brasileiro da Escultura (Mube). O curso tinha como objetivo "organizar o conhecimento, através da historia dos objetos de arte". Seu público-alvo: "interessados em geral que buscam ampliar o conhecimento em relação ao conceito de arte, suas mudanças ao longo do tempo e sua transformação em mercadoria".

Dos 14 alunos da sala, Adriana Teixeira de Lima, de 41 anos, foi a primeira a chegar. Formada em economia e em artes plásticas, Adriana viu no curso uma rara oportunidade de unir os dois universos, artes e economia, sempre conflitantes. "Nos cursos de artes, os professores sempre destacaram o lado intuitivo da arte e nunca a questão mercadológica; nos cursos de economia, aprendi a deixar a intuição de lado e a lidar apenas com a razão." Adriana desembolsou R$ 180 na esperança de, finalmente, conseguiu transformar seu conhecimento nas duas áreas em algo lucrativo. "Estou aqui para isso, para aprender a lucrar com a minha intuição", diz, determinada.

A tradutora e intérprete Ezir de Paiva, de 44, não tem grandes pretensões profissionais. Está ali por conhecer o professor e acha que de alguma forma deixará o curso com mais conhecimentos e prestígio. "Eu dou aula particular de inglês e a partir do momento que comentei com os alunos que estava fazendo um curso de arte passei a ser vista com outros olhos, com mais respeito e admiração", conta.

O sociólogo Dario Caldas, curador da Universo do Conhecimento, não escondia certa preocupação com a forte concorrência, mas esperava se diferenciar de outros espaços apostando em cursos mais longos, de maior profundidade. "Não faço a mínima questão de renegar o nosso perfil acadêmico, não sou partidário daqueles que acham que a academia tem cheiro de mofo", diz Caldas. A Universo do Conhecimento, debutando no segmento, terá concorrentes dos mais duros: a alguns metros dali, na avenida Paulista, a Livraria Cultura oferece cursos de graça, no mesmo horário. "A nossa estratégia está definida: queremos que o espaço sirva para que o aluno aprofunde o conhecimento que já tem."

Renato Janine Ribeiro acredita que a procura da classe média por cursos de conhecimento é um reflexo direto da falência da educação de base. "Como temos uma educação formal muito limitada, com grandes lacunas, é natural que as pessoas, mesmo na fase adulta, sintam a necessidade de buscar conhecimentos." Mas o professor também alerta para outro fenômeno: o anseio da sociedade por um aprendizado menos tradicional. Até há pouco tempo, segundo Janine Ribeiro, era importante e necessário apenas que o sujeito tivesse um completo domínio de sua atividade profissional, deixando o resto de lado. "Hoje, não. O conhecimento em outras áreas é muito bem-vindo e começa a ter uma ligação direta com a produtividade desse profissional. As pessoas estão acordando para isso, o que é muito bom."


Tom Cardoso de São Paulo
Valor Online, 25/07/08


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