A bienal depois do caos
O novo presidente da maior mostra de arte da América Latina começa a tapar o rombo de R$ 2,8 milhões e promete para 2010 um evento com um olhar brasileiro
Eleito por unanimidade o novo presidente-executivo da Fundação Bienal de São Paulo, o consultor financeiro e colecionador de arte Heitor Martins, 41 anos, assume uma Bienal paralisada por uma crise financeira e administrativa que se arrasta há anos. Em junho, a fundação deixou de arcar com seu compromisso de promover o financiamento, a organização e a curadoria da representação brasileira na Bienal de Veneza. O impasse e o vazio institucional só foram suplantados com a intervenção do Ministério da Cultura, que fez um aporte de US$ 170 mil para o envio das obras brasileiras. A julgar pelo projeto de Martins, as relações da fundação com as esferas governamentais vão permanecer estreitas. Ele quer que o governo participe da gestão, ocupando quatro diretorias: "A Bienal sempre teve em seu estatuto vagas para o Ministério da Cultura, Itamaraty, Estado e município." Marido da produtora Fernanda Feitosa, criadora da feira SP Arte, e sócio da empresa internacional de consultoria McKinsey & Company, Martins tem pela frente o desafio de pagar as dívidas da fundação e de montar a 29ª Bienal em outubro de 2010.
ISTOÉ - Como se dedicará ao cargo?
Heitor Martins - Mais que a dedicação individual, será o espírito de equipe que permitirá que a Bienal avance. Não é tarefa de uma pessoa só. Temos a equipe da própria Bienal, de 31 colaboradores, uma diretoria com sete diretores voluntários, mas ativos, e um novo grupo de conselheiros.
ISTOÉ - O formato de gestão compartilhada entre diretores é novidade?
Martins - Cada presidente formatou a sua diretoria e a sua equipe. Eu trouxe um modelo de colegiado, de trabalho em equipe mais colaborativo e mais horizontal. Um pouco menos hierárquico, buscando aproximar o corpo técnico da diretoria e do conselho e fazer com que essas entidades trabalhem de uma forma mais coordenada, aproximando a Bienal da sociedade.
ISTOÉ - Na 27ª Bienal, "Como viver junto", Lisette Lagnado propôs um formato semelhante ao compartilhar a curadoria com cinco cocuradores. Temos agora um "Como viver junto" no âmbito administrativo?
Martins - Esse é um modelo mais moderno, mais empresarial. Essas relações hierárquicas mais distantes, esses modelos de "one man show" já não funcionam muito bem.
ISTOÉ - Qual o rombo da Bienal?
Martins - Temos de levar em conta que a Bienal é uma fundação e não gera receita própria. Ela depende de recursos que vêm da sociedade. Ao se fazer uma Bienal, tem-se de montar um orçamento e captar recursos para custeá-la. E o que aconteceu na 28ª Bienal? A captação ficou aquém do necessário. Isso gerou déficit, que hoje está na casa dos R$ 2,8 milhões.
Para estabilizar a situação financeira, a Bienal precisa de um aporte da ordem de R$ 4 milhões. Mas temos confiança de que a sociedade vá abraçar o projeto"
ISTOÉ - Como se compõe a dívida?
Martins - É uma dívida bancária, cujo pagamento requer recursos de bancos. E incluiu algumas dívidas com fornecedores, que têm de concordar em postergar o seu recebimento. Além disso, existe um conjunto de gastos e despesas correntes que são necessários no dia a dia. Para estabilizar a situação financeira, a Bienal precisa de um aporte da ordem de R$ 4 milhões. É necessário fazer o saneamento das dívidas e resgatar o equilíbrio de caixa para uma instituição desse porte.
ISTOÉ - Em tempos de crise financeira mundial, como o seu know-how de consultor financeiro vai ajudar na captação de R$ 30 milhões para montar a próxima Bienal?
Martins - Não há dúvida de que o cenário hoje é muito mais complicado. Mas temos confiança de que a sociedade vá abraçar o projeto. Aportamos habilidade e conhecimentos específicos que no conjunto formam uma equipe muito forte. Tenho muita experiência em estratégia e em formação de equipes.
Temos pessoas que vêm de bancos, alguns empresários empreendedores, advogados. Nomes como os de Miguel Chaia, que está muito bem inserido na comunidade artística e intelectual, e de Julio Verlang, que foi diversas vezes presidente da Bienal do Mercosul.
ISTOÉ - O resgate da imagem da Bienal passa por uma reforma da estrutura administrativa. Qual é seu projeto?
Martins - O primeiro ponto que a gente tem de ressaltar é a importância da fundação. No mundo todo há cinco grandes instituições que marcaram a história da arte contemporânea do pós-guerra. A Bienal de São Paulo é uma delas, junto com Veneza, Kassel, o Museu Georges Pompidou e o MoMA. Ela é anterior à criação do Centro Pompidou e da Documenta de Kassel. É realmente um pilar, reconhecida por qualquer instituição do mundo.
ISTOÉ - Seu protagonismo não se diluiu nos últimos dez anos graças à proliferação de bienais e à crise administrativa da própria instituição?
Martins - Nós temos de assumir essa bandeira: reinserir a Bienal de São Paulo como um dos pilares do cenário da arte contemporânea internacional. Podem existir dezenas de bienais, mas o lugar da Bienal de São Paulo é preservado. O mundo inteiro olha o que está se passando aqui, com grande expectativa. Essa é a primeira coisa que deve ser entendida: o espaço existe, é importante e deve ser preservado. As pessoas perdem a dimensão dessa importância porque se atêm a questões de curto prazo, conjunturais.
ISTOÉ - Mas a crise, mesmo que conjuntural, não põe o prestígio em risco?
Martins - Existem duas crises que se sobrepõem. Há uma que parte de um questionamento sobre o papel das bienais, que se dá em escala global: qual a função de uma bienal em um mercado de arte globalizado, em um mundo onde as feiras passam a cumprir o papel de atualização do que está acontecendo na produção contemporânea? Junto a isso, existe a questão: qual o sentido da Bienal de São Paulo? Em 1951 era muito claro: ela era um mecanismo de conexão da arte brasileira com a arte internacional, em que você trazia o que estava acontecendo no mundo e colocava aqui no pavilhão. Além da crise de identidade das bienais, sobrepõe-se agora uma crise financeira, que é circunstancial.
ISTOÉ - Como lidar com ela?
Martins - Não estamos falando de nenhum obstáculo intransponível. O problema de recursos se resolve se houver projetos que sejam de interesse da sociedade. Você depende dos recursos para realizar a Bienal e para sustentar a fundação. E a sociedade vai estar disposta a apoiar na medida em que esteja em sintonia com os projetos. É muito difícil levantar recursos se não há projetos.
Queremos que a 29ª Bienal esteja muito mais próxima do público. Queremos criar uma Bienal que motive as pessoas a ter um contato direto com a arte contemporânea. As pessoas têm de ser instigadas e provocadas.
ISTOÉ - Em geral, todas as diretorias expressam o mesmo desejo. Como promover essa sintonia?
ISTOÉ - Como garantir isso?
Martins - Por mecanismos de funding que transcendam uma gestão. Algumas soluções que estamos explorando com muita intensidade são a criação de um programa educativo continuado e o desenvolvimento de mostras subsequentes, que seriam desdobramentos da Bienal de São Paulo. A representação brasileira no pavilhão de Veneza em 2011, por exemplo, vai ser definida dentro do próprio processo curatorial da 29ª Bienal. Também imaginamos uma série de recortes que possam seguir uma itinerância para museus em outras cidades brasileiras e, quem sabe, para fora do País. Isso seria muito importante para divulgar e reforçar o papel da fundação e da arte brasileira no Exterior e para levar a arte contemporânea às populações que estão fora de São Paulo.
"No mundo há cinco grandes instituições que marcaram a história da arte contemporânea do pós-guerra. A Bienal de São Paulo é uma delas"
ISTOÉ - Discute-se também, mundo afora, a pertinência das megaexposições. Há dezenas de novas bienais que não funcionam como panoramas, mas apenas como mostras temáticas.
Martins - São modelos simplificados. Nós não temos de optar por eles. Temos de ocupar o espaço que a Bienal de São Paulo merece e tem no contexto global. Não devemos subestimar a importância do que você chama de megaexposição. Ela é muito importante porque cumpre exatamente esse papel de traçar um panorama do que é a produção contemporânea naquele momento. Esse é o papel de Veneza, de Kassel e de São Paulo.
ISTOÉ - Já temos um sistema de museus e galerias que promove a circulação maior de obras internacionais. O papel de vitrine não estaria obsoleto?
Martins - Sim, a internet e o mercado editorial promoveram um acesso mundial muito maior ao que está se passando em todo o mundo. Além disso, nossos artistas trabalham fora do Brasil, temos um intercâmbio muito grande. Não existe hoje uma fronteira muito clara entre o que é arte brasileira e arte internacional. Ernesto Neto, por exemplo, é visto como um artista contemporâneo, antes de ser visto como artista brasileiro. Essas fronteiras nacionais foram rompidas e atualmente se discute qual o papel da Bienal nesse novo contexto. Nossa proposta é olhar para a arte contemporânea a partir de uma ótica brasileira, o que é uma inversão da ideia original.
Paula Alzugaray
Isto É, Edição 2068, Junho/09
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