Medidas restritivas trazem dificuldades para programas sociais
A burocracia e o excesso de moralização que surgiram a partir da comissão parlamentar de inquérito que investiga a atuação das organizações não governamentais (CPI das ONGs) prejudicam o andamento de programas sociais no Brasil, especialmente o de economia solidária, que seria “uma inovadora alternativa de geração de trabalho e renda e uma resposta a favor da inclusão social”.
Entre os entraves está a proibição de convênios com entidades da sociedade civil dirigidas por parentes de até segundo grau de pessoas que ocupam cargos públicos. A crítica foi feita pelo economista e secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego, Paul Singer, em entrevista concedida na última sexta-feira (26/6), por telefone, à Agência Brasil.
Essa campanha de moralização para impedir fraudes, na visão do secretário, além de não alcançar seu objetivo, atrasa os programas sociais do país. “Temos hoje, no Brasil, mais de 300 mil ONGs. E uma parte dessas centenas de milhares trabalha com educação, com pesquisas científicas, com saúde e outras atividades fundamentais. Todas elas estão sendo submetidas a uma espécie de camisa de força com a ideia de se impedir as fraudes. E, na verdade, não impedem, porque se você é obrigado a tirar o seu cunhado, mas estiver mal-intencionado, pode colocar um outro laranja lá. E vai ficar tudo igual.”
Confira abaixo trechos da entrevista de Paul Singer à Agência Brasil:
Agência Brasil: Há quantos projetos dentro do programa de economia solidária? E que resultados estão sendo obtidos de maneira geral por esses programas?
Paul Singer: Temos 11 ações distintas de economia solidária. Entre elas, ações de fomento direto de empreendimentos de economia solidária e de formação em economia solidária - temos um programa educativo muito amplo e que está sendo ampliado cada vez mais em parceria com o próprio Ministério do Trabalho. Estamos qualificando milhares de pessoas. No último programa, que terminou no ano passado, foram 4 mil [pessoas]. Estamos começando agora um Plano Setorial de Qualificação [Planseq] com mais de 5 milhões de pessoas. O Planseq leva mais de um ano [de duração] e é um programa extenso que dá qualificação profissional e também qualificação em economia solidária, que é fundamental em associativismo, ensinando as pessoas a trabalhar juntas, em ajuda mútua, em termos de cumprir as exigências fiscais e legais. Havia 80 mil pessoas organizadas em empreendimentos de economia solidária, nos mais diferentes setores, na fila para receber formação. Está difícil fazer as políticas sociais, que eram mais fáceis quando você podia fazer vários tipos de convênio com os diferentes parceiros em nível estadual e municipal. Agora está tudo muito mais restrito, mas está sendo feito.
ABr: Que dificuldades seriam essas?
Singer: É uma sucessão de proibições que vêm caindo em carta dupla desde 2007. Tem a ver com uma campanha de moralização das parcerias do governo federal com as entidades sem fins lucrativos da sociedade civil. Acho que essa moralização em si é correta, mas está sendo feita de uma forma muito intensa a ponto de matar a galinha dos ovos de ouro. Procura-se evitar que haja fraude, mas praticamente se impede que a própria política, pelo menos, tenha a agilidade que tinha antes, o que eu lamento muito. O exemplo que gostaria de dar é o seguinte: hoje todos os convênios passam por um cadastro único, que se chama Sincov [Sistema de Conveniamento do governo federal] e que não permite que haja mais do que um único convênio. Se quisermos fazer um programa de formação, por exemplo, temos que fazer um convênio com uma única entidade, que deve fazer toda a formação. Não posso conveniar, como fazíamos antes, com uma entidade abrangente que, por sua vez, podia conveniar nos diferentes lugares do Brasil com outras entidades de formação. Tem muita ONG se dedicando à formação. Esse conveniamento em cadeia, que fazíamos sempre, nos dava um poder de capilaridade e hoje não se pode mais. Há outras restrições que estão sendo feitas e dificultando bastante a ação das políticas sociais.
ABr: Essas restrições surgiram a partir da Comissão Parlamentar de Inquérito das ONGs?
Singer: Isso. A partir de 2007 começou uma caça às bruxas, a meu ver. É sempre a mesma coisa: há irregularidades? Sim, há. Devem ser evitadas? Sim, devem. Só que as irregularidades, provavalmente, estão presentes numa minoria de contratos. Sei lá: 10% ou 15%. É difícil calcular. Talvez você evite alguma coisa, mas, em compensação, as dificuldades que você cria… Para começar, custa caro ao erário. Algumas vezes, tanto ou quanto as fraudes custavam antes. Mas, antes de mais nada, você atrasa e dificulta políticas que ajudam milhões de pessoas. Não é a finalidade, mas acaba acontecendo.
ABr: Qual seria a alternativa? Como moralizar e ao mesmo tempo não impedir que as políticas públicas aconteçam? Qual seria esse modelo?
Singer: O modelo, na verdade, deveria parar de proibir coisas. Os que fazem os convênios, como o Ministério do Trabalho, no qual eu estou, praticamente não foram consultados. Isso está sendo feito pelos órgãos de controle. Não estou discutindo as boas intenções deles. Só estou dizendo que eles não entendem as dificuldades que nós temos porque eles não fazem convênios. Órgão de controle como Tribunal de Contas, Controladoria-Geral da União e mesmo os ministérios do Planejamento e da Fazenda não fazem convênio. Não precisam. A ação desses ministérios é sobre os outros ministérios que fazem convênios. Eles nos controlam. É a função deles. Não estou querendo que não nos controlem. Mas, na hora de mudar o caráter dos controles para torná-los eventualmente mais abrangentes e mais efetivos, deveríamos estar juntos. E infelizmente não estamos. Algumas vezes, as coisas são feitas com intenções boas - bem, mas o inferno está cheio de boas intenções. Outra vedação recente é que hoje você está proibido de fazer convênios com uma organização da sociedade civil - pode ser uma ONG ou uma Oscip [organização da sociedade civil de interesse público] - que tenha na sua direção qualquer pessoa que exerça algum cargo público em nível federal, estadual ou municipal. Mas não só. Estão proibidos também os convênios com todas as entidades que tenham algum dirigente que seja parente de alguém que esteja em cargo público em parentesco de até segundo grau. Temos 5,6 mil municípios. Temos milhões de pessoas que são vereadores e secretários municipais. Proibir convênios com parentes dessas pessoas na santa ideia de que isso se evitará que haja favorecimento com o parentesco é, inclusive, uma violação do direito que essas pessoas têm de trabalhar e atuar como qualquer outro. Quando a pessoa é prima ou cunhada de um vereador, por que ela não pode continuar dirigindo uma ONG? Para podá-la tem que ter alguma prova de que a pessoa agiu errado. De antemão, preventivamente, proibir isso com a suposição de que o parentesco é indutor de fraude, a meu ver, não cabe.
ABr: O excesso de burocracia, então, estaria também prejudicando o programa?
Singer: Está prejudicando, eu diria, todas as políticas sociais brasileiras que, tradicionalmente, se fazem - não tem outra maneira de fazer - com o chamado terceiro setor. Temos hoje no Brasil mais de 300 mil ONGs. E uma parte dessas centenas de milhares trabalham com educação, com pesquisas científicas, com saúde e outras atividades fundamentais. E todas elas estão sendo submetidas a uma espécie de camisa de força com a ideia de se impedir as fraudes. E, na verdade, não impedem, porque se você é obrigado a tirar o seu cunhado, mas estiver mal-intencionado, pode colocar um outro laranja lá. E vai ficar tudo igual. Não é difícil fraudar isso. Mas, para quem não quer fraudar coisa nenhuma e quer trabalhar sério, são dificuldades que aumentam cada vez mais.
ABr: A crise econômica, de certa forma, também prejudicou os programas sociais no Brasil?
Singer: Pelo contrário. O que ela fez foi aumentar a importância e a demanda por esses programas. Aumentou o desemprego, aumentou a probreza. Então, as políticas socias têm de crescer para atender às demandas.
ABr: A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) divulgou números apontando que a crise econômica deixará 1 bilhão de pessoas passando fome no mundo. Que ajuda os programas sociais dariam para diminuir esse número?
Singer: Os programas sociais ajudam imensamente. Aliás, o Brasil é um país de vanguarda no sentido de redução de pobreza e de desigualdade. Ainda tem muita pobreza e desiguldade no nosso país. Mas, comparativamente, [o país] é outro. Nós conseguimos avançar - e avançar recentemente. Cerca de metade dos que antes eram pobres hoje está na chamada classe C e está acima da linha de pobreza. E as novas ações do governo dão mais potência a essa luta. Os programas mais importantes, a meu ver, são o do salário mínimo e o Bolsa Família. E eu quero dizer que o Bolsa Família significa salvar uma geração toda, porque efetivamente nós sabemos que as crianças das famílias beneficiárias do Bolsa Família estão indo à escola, estão sendo alimentadas e passam de ano.
ABr: Que outro programa o senhor destacaria?
Singer: Temos hoje um programa de crédito aos mais pobres por meio de bancos comunitários. Somos parceiros nesse programa com o Banco do Brasil. Os bancos comunitários recebem depósitos do Banco Popular do Brasil, que é uma parte do Banco do Brasil. Esses bancos são resultado da construção de comunidades coesas, que reúnem suas próprias poupanças - que são poucas, mas importantes - e usam moeda social para promover atividades dentro de seus bairros. E isso dá resultado. Eles começam a desenvolver atividades que geram trabalho e renda e começam a sair da pobreza. São programas dessa natureza que me parecem mais importantes, programas emancipatórios. Eles estão acontecendo e pessoalmente posso dizer que estou bastante otimista a respeito do nosso país.
ABr: Esses programas de economia solidária poderiam ser uma solução para a crise ou para esse 1 bilhão de pessoas que estarão passando fome no mundo?
Singer: Sim. Em grande parte está sendo um modelo. Na agricultura, o cooperativismo de gente pobre é um instrumento fundamental. Os camponeses produzem comida, antes de mais nada, para eles próprios. Mas, para isso, eles precisam ter apoio, sementes, crédito, apoio tecnológico. O governo brasileiro faz política de economia solidária por meio de 22 ministérios, bem mais do que a metade dos ministérios do governo federal, que são 37. Todos os ministérios que são de políticas sociais dão apoio ao [programa de] economia solidária. É isso que dá ao Brasil essa imagem de ser um país onde a economia solidária tem amplo apoio. Está crescendo também o apoio dos governos estaduais e municipais à economia solidária no Brasil. Em outros países da América Latina é a mesma coisa, mas eles começaram mais tarde, então estão um pouco mais atrasados. Há dois países na América Latina que mudaram suas constituições recentemente, inclusive em referendos populares: a Bolívia e o Equador. Nas duas constituições, a economia dos países é definida como economia solidária. São países com os quais colaboramos. A Venezuela está fazendo programas muito amplos também de apoio e de fomento à economia solidária. Isso está, inclusive, se estendendo para outros países, como os Estados Unidos, que hoje têm uma rede de economia solidária.E não é do governo não. Isso vem da sociedade civil.
“Acabar com o Bolsa Família seria uma crueldade”
Agência Brasil: O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que é melhor dar dinheiro para o cidadão do que desonerar a indústria. No entanto, as medidas que o governo vem adotando para combater a crise se concentram principalmente em desoneração da indústria. Isso não é uma postura contraditória?
Paul Singer: O que vocês chamam de dar dinheiro ao cidadão são as medidas relacionadas ao Bolsa Família, ao salário mínimo e agora recentemente ao [programa] Minha Casa, Minha Vida. São programas de longo prazo. O Bolsa Família não tem data, graças a Deus, para acabar. E acaba quando a família deixa de estar necessitada. A desoneração é realmente uma medida transitória, de momento de crise, e é normal que ela acabe e os impostos sejam restaurados.
ABr: O Bolsa Família é um programa que vem sendo muito questionado, com críticas de que o governo estaria dando o peixe, mas não estaria ensinando a pescar. Já não está na hora de o governo começar a ensinar as pessoas a pescar?
Singer: O esforço de ensinar a pescar é contínuo para o governo. Não tem nada a ver uma coisa com outra, não é “ou”. O Bolsa Família é um programa de uma urgência enorme e seria, a meu ver, uma crueldade acabar com ele a pretexto de dizer que agora vamos ensinar a pescar. Com fome, ninguém aprende coisa nenhuma. E, inclusive, pescar significa lutar para ter um trabalho que dê renda. Essa coisa de ensinar a pescar é bobagem no sentido de que o cidadão é pobre porque ele não sabe coisas. Não é assim. Isso é um ponto de vista cruelmente patronal. Os empregadores sempre almejam ter disponíveis empregados que já tenham experiência. As pessoas são pobres por razões estruturais e históricas, que já vêm de séculos. Para que ele deixe de ser pobre, são necessárias medidas estruturais como redistribuição de terra, reforma agrária, investimentos em educação. E isso está sendo feito, por exemplo, com o ProUni [Programa Universidade para Todos, do Ministério da Educação], que é um programa que ensina jovens que jamais pisariam numa universidade a pescar. E ele atinge muita gente. As pessoas que criticam o Bolsa Família esquecem que há muitos programas que fazem exatamente isso. Que são programas, vamos dizer, de luta positiva para que as pessoas deixem de ser miseráveis pelo próprio esforço.
ABr: E quantas pessoas fariam parte dos demais programas?
Singer: A estimativa é que haja 400 mil quebradeiras de coco organizadas em cooperativas em todo o Nordeste e Norte do Brasil. As quebradeiras de coco vivem da exploração do babaçu, que é de grande utilidade e tem muitas aplicações, desde farmácia e cirurgias a sabonetes. Só que, quando deu a onda de soja, começaram a derrubar o babaçu. E as mulheres se organizaram e estão lutando para preservar a árvore. É uma luta que é, ao mesmo tempo, ambiental e social. Nós estamos conseguindo, graças à ajuda do governo, que os próprios interessados se organizem. Outro exemplo: temos hoje o Ministério da Pesca. Os pescadores me fizeram ver que há envenenamento dos cursos de água no Brasil devido à expansão da cana. Há um líquido poluente, que decorre da fabricação do álcool, que é jogado na água e simplesmente extermina os peixes. É preciso coibir essa destruição dos recursos naturais.
Daniel Mello e Elaine Patricia Cruz, da Agência Brasil
Envolverde, 01/07/09
© Copyleft - É livre a reprodução exclusivamente para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.
Nenhum comentário:
Postar um comentário